Entre 1996 e 1997, a Art Presse organizou os “Seminários Paulistas “, curso de filosofia ministrado por Olavo de Carvalho. Escolhemos o Nacional Club, localizado no bairro do Pacaembu para abrigar os encontros, que reunia por volta de 50 pessoas, um sábado por mês. Os encontros foram apoiados por Wagner Carelli, diretor das revistas Bravo e República.
A iniciativa partiu do meu sócio, Oswaldo Pepe, que sempre foi uma antena receptora de tendências. A Art Presse tem a vocação de buscar tendências de comportamento e negócios, na contramão de outras agências de Relações Públicas e comunicação. Anos antes havíamos investido em mountain bike; nossa parceira de negócios foi a Renata Falzoni e, juntos, demos vida a uma atividade prosaica (andar de bike à noite) e criamos os “Night Bikers”, motivo para um outro post.
Nossa intenção: compartilhamento de conhecimento e crescimento pessoal – para o máximo de pessoas possível. A estratégia para promover os cursos, em época que ainda não tinha email disseminado ou Redes Sociais, foi a mais básica: assessoria de imprensa, cartas e cartazes tipo lambe-lambe (veja imagem que abre este post). As apostilas eram reproduzidas na fotocópia. Mantenho alguns fascículos, o primeiro foi dedicado por Olavo a Luiz Antonio Nabuco de Almeida Braga.
E que conhecimento pessoal. A minha introdução à filosofia se deu pela leitura solitária e sem intermediários do livro Fundamentos de Filosofia, de Manuel García Morente, onde tomei gosto pela coisa, em 1977. Logo em seguida, no Colégio Equipe, passei pela saudável transformação de um jovem Libelu (do movimento estudantil Liberdade e Luta): me tornei um libertário trotskista quando fui seduzido pela promessa de um socialismo internacionalista, onde todos – em todas as nações do mundo – seriam iguais.
O curso foi uma tijolada na minha mente. Já operava no mundo real, com uma filha em crescimento, onde precisava vender o almoço para pagar o jantar. As ilusões de transformação da sociedade já apareciam como uma proposta difícil de ser realizada e o mais importante naquele momento era lutar para construir um negócio e dar oportunidade a todos que estivessem ao meu lado.
Olavo começava o curso falando sobre (recorro à transcrição) os “três tipos de introdução à filosofia: histórica, sistemática e aporética”. Histórica significa como os temas e problemas são analisados de acordo com as várias doutrinas; a sistemática, como uma busca pela ordem lógica e a aporética, como uma sondagem dos problemas em todas as superfícies e profundidade que exige do pensador. Olavo combinava os três modelos e acrescentava uma quarta via chamada “método ascético” para treinamento dos alunos: um chamado à honestidade e ética intelectual, “não fingir que sabe o que não sabe e não fingir que não sabe o que sabe”.

Alma gauche
Nos primeiros encontros, armado de todos os preconceitos e desconfortos que alimentavam a minha alma gauche, achando que sabia o que não sabia, tentei esquina-lo com inquietações políticas. Olavo é uma pessoa doce, afável, não se incomodava. Me respondia com perguntas e respostas que me encaminhavam para soluções lógicas. Ao longo das aulas nos brindava com o seu método – é isso que realmente importa em um curso de filosofia: primeiro levanta-se um tema, uma pergunta. Analisa-se um tema de todas as formas e ângulos, sem preconceito ou ideias pré-concebidas. A resposta se dará ao longo da apresentação e o resultado pode ser completamente diferente de suas predileções ou percepções habituais.
Engraçado, no começo fui duramente criticado por alguns amigos, quando descobriram que eu estava “dormindo com o inimigo”. Com formação jornalística, e conhecendo vários jornalistas, alguns amigos, era natural que eu me considerasse de esquerda. Ninguém que eu conhecesse se assumia como sendo de direita ou não sendo de esquerda. No máximo, por causa da pressão social, um ou outro se apresentava como sendo de centro.
Em 1986 entrei na redação do Jornal da Tarde com uns exemplares da primeira edição da revista Trip. A Art Presse era a agência de comunicação da empresa do Paulo Lima e do Carlos Sarli. Quando o Marcão (Marcos Faerman) me encontrou mostrei-lhe alegremente a revista. Havíamos trabalhado juntos na revista Shalom (ao lado do Jaime Klintowitz, Alberto Dines, Carlos Clémen e Toninho Mendes) e ele era meu amigo. Marcão pegou a revista, folheou-a com vagar e levemente contrariado e ao final, passou a me esculhambar na frente de toda a redação. Marcão tinha sido o fundador do jornal Versus e acho que era do Partidão. Ver-me com uma revista luxuosa (a primeira edição da Trip apresentava um surfista dropando uma onda à noite e tinha um verniz especial na capa), com lombada quadrada e cheia de anúncios, mostrou-lhe cabalmente que eu havia tombado para o inimigo.

Acho que eu já estava acostumado a apanhar dos amigos por me declarar ignorante e desconfiado das certezas políticas, que tanto me incomodavam, e percebi claramente que as discussões não estavam centradas na questão lógica e sim em questões programáticas e pessoais. Por isso, assistir às formulações dos temas, análises e considerações do Olavo foram completamente reveladoras para mim.
Lavagem cerebral
Entendi claramente que a principal missão do Olavo era recuperar boa parte das pessoas de uma lavagem cerebral pela qual eu, e mais um monte de gente, havia passado por anos de leituras equivocadas e catequização sistemática. Me incomodava a excessiva admiração de alguns alunos por Olavo. Uma admiração que me impressionava porque era exatamente isso que condenava no lado “companheirismo” das agremiações esquerdistas. Hoje entendo que aquelas pessoas, alguns alunos empoderados pela descoberta de sua independência intelectual, se identificassem completamente com aquela inteligência diferenciada.
O Olavo era um pensador preocupado com o princípio e não com o fim. O princípio: analisar um problema em todas as suas dimensões e possibilidades, sem o manto limitador da ideologia. Hoje assisto a um festival de asneiras em torno de seu nome centrado em suas “finalidades”, algo como a obsessão do pensador em varrer a ideologia marxista do mapa mental das pessoas. Nada disso. É um princípio básico do pensador livre iniciar um processo de elaboração intelectual sem estar contaminado ou manchado pelas ideologias (todas elas), ainda que possam servir de referências (como a abordagem histórica ou sistemática e com a ajuda de outros pensadores). A busca pela verdade apodítica, essencial, deve começar exatamente pela mente despida e isenta. O resultado, caso alcançado, será a iluminação tépida do conhecimento alcançado e indestrutível, a espada afiada do guerreiro da justiça entre os homens.
O imbecil coletivo
Olavo tinha acabado de lançar o livro “Jardim das Aflições” e a repercussão foi mínima. Em 1997 nos comprometemos a divulgar o seu recém-lançado livro “O imbecil coletivo”. Já nas primeiras tentativas verificamos a impossibilidade de varar a muralha ideológica: Olavo era considerado um asqueroso pensador direitista. Em nossos almoços quando vinha a S. Paulo percebi claramente que o Olavo era um anarquista em todos os sentidos, um iconoclasta. Falei sobre isso e ele reclamou que os pensadores direitistas o consideravam esquerdista e os esquerdistas o considerassem um direitista. Nossa estratégia foi transpor esta muralha: entramos em contato com os acionistas, diretores e donos das empresas de mídia. Enviamos-lhes um livro e uma carta solicitando divulgação. O retorno foi o seguinte: o Evandro Carlos de Andrade agradeceu, disse que apreciava o pensador e pautou uma entrevista na TV Globo (a contragosto da redação), Roberto Marinho também foi muito gentil, agradeceu e disse que gostava muito da obra do filósofo. Otávio Frias Filho foi um caso à parte, e explico no parágrafo abaixo.
O jornalista Paulo Francis tinha falecido no começo de 1997. Francis era conhecido como um grande polemista, uma grife que ajudava a vender jornais e chamar a atenção. Anos antes ele conheceu a Art Presse porque havíamos organizado a primeira exposição de sua grande ilustradora, a artista Mariza Dias Costa. Nossa ideia era “oferecer” Olavo de Carvalho para escrever na Folha e quando o “Otavinho” (como Otavio Frias Filho era conhecido) me ligou para agendar um encontro com o Olavo achei que havia chegado a grande hora.
Agendamos um almoço no Le Casserole, um bistrô francês localizado no largo do Arouche, centro de S. Paulo, próximo à alameda Barão de Limeira, onde fica a Folha de S. Paulo. Além da ótima comida, o restaurante é um charme e fica em frente a uma floricultura, um contraste em meio ao ambiente distópico e “walking dead” metropolitano.
Cheguei um pouco antes com o Oswaldo Pepe e sentamos na área de fumantes (havia isso em S. Paulo na década de 90), em uma mesa para quatro pessoas de frente para a janela. Olavo chegou logo em seguida, gostava de se hospedar nesta região, ao lado das putas como dizia brincando, onde se sentia à vontade. Antes do almoço peguei a minha Nikon e tirei várias fotos do Olavo em preto e branco, que estamparam por anos o seu blog). Otavinho chegou logo em seguida, pontualmente, e trouxe o editor de um caderno recém-lançado, Ilustrissima, o Alcino Leite Filho.
Otavinho se mostrou muito interessado em Olavo, disse que o admirava e que o queria como colaborador. Meu sócio, Pepe, pressionou Otavinho para que Olavo fosse o substituto do Francis, e que para isso o mestre precisaria de dois ou três colaboradores para dar conta do serviço. Eu fui contra e acho que hoje deveria ter sido mais assertivo. Estava claro que a Folha de S. Paulo, nem nenhum outro veículo, seria local para um Olavo incendiário e iconoclasta. O veículo de comunicação não é plataforma adequada para este tipo de discussão. E o Olavo não seria substituto de um Paulo Francis até porque sua proposta nunca foi essa. O Olavo é também um grande polemista; me lembro da erudição de um Mário Ferreira dos Santos e as várias maneiras e ângulos de um discurso, do sofisma à retórica. O próprio Olavo se debruçou sobre como malandros vencem um discurso por meio de expedientes que não tem nada a ver com a lógica ou com a integridade/honestidade do processo intelectual (leia “Como vencer um debate sem ter razão”, de Olavo de Carvalho). Durante o almoço, fora o tom doce, preciso e afiado de Otavinho, me chamou a atenção a quantidade de cervejas que Otavinho tomou. E também deve ter fumado um maço de cigarros durante as três horas e poucas que este histórico encontro aconteceu. O Olavo estava lá, tranquilo, impassível, bebendo seu cafezinho e fumando sem parar, adorando toda aquela conversa.
Astrologia
Sim, Olavo tinha um passado de análise da Astrologia. Falei com ele sobre isso e ele me deu seu livro sobre Astrocaracterologia (“Astrologia e Religião”,Olavo de Carvalho). A primeira tentativa de identificação e hierarquização dos tipos humanos é atribuída aos gregos. Outros povos também evoluíram na identificação de traços comuns de personalidades. A observação destes tipos e a sua classificação encontrou nos astros celestes a régua exata de marcação.
Lembro como se fosse ontem. Para ministrar o seu curso, Olavo tinha apenas três pedidos: 1) Um cinzeiro ao seu lado (ele fumava um cigarro atrás o outro), 2) uma garrafa térmica com café sempre quente e 3) que não houvesse nenhuma palavra ou expressão proibida – tudo seria analisado, desde que com honestidade intelectual. Depois dos nossos almoços, Pepe levava o Olavo em sua Norvil Norton Commando 850 na garupa (e sem capacete que não era obrigatório na época) até o Nacional Club; eu ía com a minha K100 vermelha.
Bruno Tolentino
Olavo passou a frequentar esporadicamente a Art Presse e levava sempre o Bruno Tolentino. Ambos pareciam um destes personagens de Miguel de Cervantes – na época achava-os bastardos inglórios que lutavam uma guerra perdida.
Bruno se foi, e nos deixou grandes poemas épicos. Olavo em seguida, mudou-se para Washington, deixando para trás um país tomado pelo PT e seu programa de poder e transformação. Enviamos-lhe mensalmente uma parcela em dólares para ajudá-lo a se instalar por lá, a exemplo de vários outros alunos, ex-alunos e admiradores de sua inteligência.
Acompanhei durante anos sua construção do blog, depois site. E agora vejo claramente a importância do Facebook como agregadora de comunidades, em um momento que esta rede social luta para manter a sua relevância. Idem o YouTube que abrigam vários dos vídeos-aulas do mestre. Olavo ficou pop – o mundo todo quer acompanha-lo. Até o futuro presidente Jair Bolsonaro que o tem como uma das referências.
Josias Teófilo: O Jardim das Aflições em 24 quadros
Recentemente voltei a ter contato com a fera de maneira indireta. A Art Presse recebeu a visita do cineasta Josias Teófilo e do produtor-executivo Matheus Bazzo, mais uma vez iniciativa do meu sócio Pepe. Josias temia pela reação ao seu filme no festival de cinema de Pernambuco ao seu filme “ O Jardim das Aflições”, sobre o Olavo. Não havia assistido ainda a este filme seminal. Josias é o antípoda do conservador e “direitista” enrustido. É um artista, um intelectual de rara sensibilidade. Foi com uma ponta de inveja que assisti ao seu filme no Now da NET meses depois: naquelas tardes calorentas e agradáveis das aulas de Olavo no Nacional Club, me via filmando o pensador em diversos ângulos e tomadas, em meio a fumaça incessante dos seus cigarros. Os cursos do Olavo, o Olavo em si, é filme pronto, um processo colorido de sua mente endiabrada (desculpe o termo, Olavo!).
Ao final, considero que o objetivo dos “Seminários Paulistas” foi alcançado. Pelo menos para mim que experimentou a revolução de comportamento e das drogas – que oferecia um atraente atalho para a conexão com o mundo e o além-mundo, mas apenas um atalho -, a revolução socialista que achava que esta seria a panaceia universal para os graves problemas sociais e da desigualdade que me choca, e a revolução interior, esta sim poderosa uma vez que delimita nossos pequenos diabos internos e nos aprimora como homens voltados para melhorar a civilização nos menores detalhes, como ajudar o próximo, estar ao lado da família e dos que precisam e parar na faixa dos pedestres. Mais do que uma revolução, uma revelação de toda a potencialidade do homem.
Dou muita risada ao ver tanto os conservadores “direitistas” que encontram um Olavo escatológico em suas páginas no Facebook, onde penam para entender as suas diatribes quanto da grande mídia ou comentaristas com viés de esquerda que não sabem como classifica-lo e o chamam de “ex-astrólogo” ou “ideólogo do Bolsonaro”.
Olavo, incontrolável, subiu o tom de suas catilinárias ao reclamar contra os jornalistas destes veículos – “no meu tempo de jornalismo (era copydesk do Jornal da Tarde) os cantores de ópera eram entrevistados por especialistas em música, os filósofos por escritores e assim por diante”. Não sei se serve de consolo para o Olavo mas cansei de ir a coletivas com grandes músicos que reclamavam das perguntas dos repórteres, que eram sempre rasas e mal feitas. Acho que este é um mal que acomete veículos que não tem tempo e dinheiro para manter grandes celeiros de pensadores e especialistas. Acho que esta batalha já foi ultrapassada e vencida pelas “novas mídias”.
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