A pesquisadora Elizabeth Anne Watkins, do instituto Tow Center da Columbia University, publicou recentemente um importante “Guia para Tecnologia Publicitária” (“Guide to Advertising Technology”) no site do Columbia Journalism Review.
Watkins se concentra especificamente na evolução das chamadas “ad tech”, as empresas de tecnologia publicitária que mudaram a totalmente as indústrias do jornalismo e do publishing digitais.
Watkins argumenta que a tecnologia publicitária gerou uma imensa infraestrutura técnica. As tecnologias e motivações da publicidade são a base da economia da internet. Os sites jornalísticos não são exceção. As informações que procuramos sobre o mundo estão apoiadas e são formatadas pela publicidade e suas necessidades. Os jornalistas precisam saber mais sobre essas tecnologias, como elas funcionam e como elas influenciam a prática, a distribuição e a percepção do jornalismo.
A tecnologia publicitária pode ameaçar a reputação e a viabilidade econômica dos publishers em diversas maneiras. A chamada “ad tech” promove um tipo específico de engajamento com a audiência, e suas estruturas de incentivo comprovadamente afetam o modo como as notícias são produzidas, reduzindo a confiança dos leitores que os publishers estejam oferecendo uma cobertura jornalística objetiva. O fluxo de dados dos usuários via ad tech por sistemas não-transparentes, e em alguns casos com a instalação de malware nos equipamentos dos leitores, ameaça a privacidade e segurança dos leitores e pode danificar ainda mais a imagem dos publishers. A lentidão no carregamento e a distração incômoda dos anúncios tipo display pode reduzir o desempenho dos sites de notícias e afugentar os usuários, que migram para “jardins murados” como aplicativos privados ou plataformas de redes sociais. Isso pode desviar o público para longe dos outlets de jornalismo profissional, deixando a audiência exposta a operações de manipulação informativa, em padrões que os acadêmicos e legisladores estão apenas começando a entender. As políticas sobre publicidade em redes sociais ameaçam borrar a fronteira entre jornalismo e propaganda política, e podem incentivar os chamados “influenciadores” a ignorar totalmente os publishers e criar seus próprios conteúdos. Empresas de busca, por sua vez, têm sido acusadas de explorar seu poder sobre como os usuários acham e acessam as informações.
Para produzir este guia, partimos de uma série de perguntas, incluindo: qual é a relação entre publishers jornalísticos e anunciantes? O que está mudando? O que está em disputa? E como o sistema atual de publicidade, autores, leitores e equipamentos influencia as notícias?
Principais destaques:
· A publicidade foi essencial para o desenvolvimento do jornal moderno e da reportagem objetiva. As mensagens publicitárias de hoje, transmitidas por meio de um sistema interconectado de softwares, servidores de dados, agência de marketing e mercados de dados, ainda sustentam a maior parte da produção de notícias, mas são pouco estudadas nos cursos tradicionais de jornalismo.
· A dependência dos publishers em relação à ad tech facilita a coleta e movimentação de dados dos usuários por meio de sistemas opacos, o que pode ameaçar a confiança dos leitores nas notícias.
· O ad tech e suas métricas comprovadamente alteram a produção interna das notícias, o que cria um conflito com os compromissos clássicos do jornalismo com a cobertura objetiva.
· O mercado hiper-eficiente de anúncios programáticos fez os preços despencarem, reduzindo o faturamento para os publishers.
· O ad tech é afetado por fraudes como visualização por “bots” (softwares que imitam usuários humanos), o que faz com que muitos anunciantes transfiram seus investimentos publicitários para as redes sociais e sites de buscas, reduzindo ainda mais o faturamento dos publishers.
· Os efeitos negativos do ad tech na experiência do usuário (anúncios visualmente invasivos, lentidão no carregamento e consumo da franquia de dados móveis do usuário) pode levar os leitores (e o dinheiro relacionado com sua atenção) para longe dos sites jornalísticos, dando preferência para apps privados e plataformas sociais.
· A relação entre publishers e redes sociais representa uma dinâmica assimétrica de poder, e já se sabe que ela afeta a capacidade dos publishers em atingir as audiências, especialmente no caso dos publishers locais.
· O controle das plataformas sobre a exibição de conteúdo jornalístico levou alguns publishers a recorrer ao uso de influenciadores, o que por sua vez estimula o crescimento de firmas que oferecem conteúdos produzidos sob medida e com precisão de algoritmos especificamente para influenciadores. As plataformas estão tentando impor normas sobre a distribuição de conteúdos por influenciadores, mas isso pode ser uma tarefa difícil.
· Os mecanismos publicitários das redes sociais, especialmente o “hyper-targeting”, podem ser transformados em armas por agentes mal intencionados.
· Todos os jornalistas, de repórteres a editores, precisam se manter informados sobre os mercados dinâmicos de produção e consumo de notícias e informações.
A publicidade encompassa a economia da internet. “Tecnologia publicitária” é um termo para o sistema de softwares, servidores de dados, agências de marketing e mercados de dados que facilitam a venda de dados dos usuários e a exibição (display) de mensagens publicitários para os usuários da internet, incluindo sites de buscas, redes sociais e aplicativos. A grande maioria dos sites e das plataformas sociais são sustentados por ad tech. Os sites jornalísticos não são exceção. O problema é as escolas de jornalismo estão dando pouca atenção à economia política da publicidade nos sites jornalísticos. A experiência do usuário em diferentes aparelhos, a perda de controle sobre o que é exibido nos sites dos publishers e como essa perda pode afetar a reputação da marca estão entre os temas pouco abordados nos currículos do jornalismo profissional. É uma tendência preocupante, já que o ad tech pode influenciar a produção, distribuição e a percepção do jornalismo, tanto em aspectos óbvios como sutis.
As redes sociais em especial causaram uma ruptura no controle que os publishers costumavam ter sobre as informações e publicidade, e o ambiente com múltiplos aparelhos inverteu a primazia pela atenção dos leitores, que foi por muito tempo uma exclusividade dos publishers. Os experimentos com formatos de anúncios borraram a antes clara linha divisória entre os departamentos editorial e comercial das empresas jornalísticas. A ambiguidade é hoje a norma. Jill Abramson, ex-diretora executiva do New York Times, faz uma consideração sobre seus valores com um senso de nostalgia “Talvez eu fosse linha-dura demais, mas eu acreditava na muralha (entre os lados comercial e editorial do jornal)”.
Watkins observa que o ad tech cria estruturas de incentivo, que podem influenciar o modo como repórteres e editores pensam a respeito da produção de notícias, e como as tecnologias publicitárias ameaçam o relacionamento entre publishers e leitores, incluindo reputação e marcas jornalísticas. O fato de que as instituições jornalísticas, que estabeleceram um compromisso de informar os cidadãos em uma democracia livre, estejam participando conscientemente do sistema técnico da publicidade – que comprovadamente viola a privacidade dos leitores – é um sério dilema ético. A tecnologia e a sociedade estão misturadas e constroem uma a outra, e os jornalistas precisam ter compreensão de ambas para apresentar uma narrativa que nossa democracia exige.
É relevante observar que este Guia é um “item de biblioteca”, o que significa que suas fontes primárias não são entrevistas, mas reportagens do setor de tecnologia, literatura acadêmica nos campos de marketing e estudos de jornalismo, manuais de marketing e “cases” de faculdades de administração.
O ad tech é um campo que se desenvolve muito rapidamente, fica portanto um alerta que os detalhes podem estar sujeitos a mudanças. As lições políticas e filosóficas, contudo, devem continuar relevantes.
Watkins conclui seu guia dizendo que sem a publicidade, não teríamos visto o surgimento da cobertura jornalística independente, livre das amarras do patrocínio político. Os modelos baseados em assinaturas asseguram que apenas pessoas com dinheiro terão acesso às notícias; a publicidade torna as informações disponíveis para todos. E sem publicidade, dificilmente a internet teria crescido tão rapidamente e atendido tantas pessoas ao redor do mundo. Mesmo assim, essas infraestruturas criaram desafios imprevistos para a produção e distribuição de notícias. O investidor de tecnologia John Battelle, escrevendo sobre os danos causados pela publicidade digital, citou o autor Steven Johnson (que por sua vez estava citando Thomas Schelling, ganhador do Nobel): “Uma coisa que ninguém consegue fazer, não importando o rigor de sua capacidade analítica ou de sua imaginação, é uma lista de coisas que não vão acontecer com ele”.
É aqui que entram os jornalistas. Os jornalistas precisam ser mais rigorosos em sua compreensão e em sua curiosidade sobre o ecossistema sócio-técnico e a economia política da publicidade. Isso não apenas porque seu trabalho é distribuído por meio desse desse sistema, mas também porque como cidadãos de uma república democrática capitalista, precisamos de uma cobertura jornalística séria das complexas relações entre representantes eleitos, as infraestruturas de informação e distribuição que confiamos e as informações apresentadas a nós pelos publishers jornalísticos.
O Guia completo em português pode ser visto no meu blog, clicando aqui.