Sim, você leu certo.
Antes de argumentar o contrário – por impulso imediato de proteção a si mesmo/namorado/pai/irmão – vamos falar sobre Fátima, Júlia e Priscila.
Em abril de 2019, Fátima, 54 anos, foi convidada, pelo seu então namorado, para um jantar romântico. O restaurante, na verdade, era um beco. O que ela não imaginava, era que um estupro coletivo havia sido previamente planejado pelo próprio namorado e os amigos dele. Foram cinco homens no total. Ao final, depois de terem introduzido um pedaço de madeira em sua vagina, estourando sua bexiga, desdenharam: “você é tão feia que te fizemos um favor”.
Júlia, 19 anos, teve uma história parecida. Depois de anos de estudo, foi aprovada na universidade que queria e resolveu comemorar, com seus melhores amigos, em uma festa. O que ela não esperava, era que um deles se tornaria seu estuprador. E pior, que filmaria tudo e postaria em – diversas – redes sociais, com um comentário, no mínimo, sarcástico: “você fica linda chorando”.
No caso de Priscila, com seus 10 anos, só queria brincar. Entretanto, sua família achava que ela tinha vocação para ser modelo mirim. Criaram, assim, uma página na internet, que – constantemente – recebia comentários hipersexualizados. O que ninguém supunha, era que seu pai tornar-se-ia seu estuprador. Durante os inúmeros atos, dizia: “você me provoca”.
O que elas possuem em comum?
Os nomes fictícios e as histórias verdadeiras. São episódios traumáticos que viraram manchetes e matérias de reportagens que, sobejas vezes, confrontaram suas dignidades, moralidades e honras.
A sociedade tende a culpabilizar as vítimas e minimizar a ação do criminoso. Para muitos, o primeiro julgamento é: “o que tal pessoa estava fazendo com aquela roupa/companhia/hora/lugar?”.
A comprovação deste cenário adveio da pesquisa de opinião feita pelo Datafolha e encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2016. Constatou-se que 33,3% da população brasileira acredita que a vítima é culpada em casos de estupro. Entre os homens, a porcentagem sobe para 42%.
Tenebroso!
É inconcebível que pensamentos e comentários inquisitivos sobre a conduta dessas mulheres sejam proferidos pela população feminina; principalmente por estas serem, também, possíveis vítimas.
Cerca de 86% das violências sexuais do mundo são contra nós. E, apesar de não sermos exclusivas, representamos uma vasta proporção.
A música “Testando” de Ellen Oléria (adoro!) bem ecoa: ”[…] Não importa pôr roupa chique ou dar seu sobrenome, A mulherada já sabe […], Sozinha cê não tá segura.”
Mas, o que os homens têm a ver? – diria o ansioso de plantão.
Bom, os homens representam 99% dos agressores sexuais globais (University of Chicago Press). E isso, definitivamente, não podemos ignorar.
E TODOS os homens devem “pagar” por isso? – pode me perguntar.
Vejamos.
A cultura do estupro é uma realidade, quer você acredite ou não. Podemos ser um mundo multicultural, mas garanto que essa verdade assombra todas as sociedades.
O conceito, segundo a autora Susan Brownmiller (1975), refere-se a existência de uma cultura/prática social hegemônica que apoia o estupro, a partir do modo como define a sexualidade masculina a naturalmente agressiva e a feminina, a sua falta de confronto. Ou seja, ensinamos a sociedade a se proteger de um estupro, e não a condenar diretamente o ato. Com isso, acabamos por desenvolver, aceitar e, pior, relativizar o estupro no decorrer da existência humana.
De acordo com a autora Andrea Nye, a tipificação penal (o que é) e a punição do estupro variou ao longo do tempo e consoante com o “tipo” de mulher! Se era virgem ou casada, por exemplo, aumentava-se ou diminuía a pena.
Admitia-se, ainda, que o comportamento do agressor era um “estímulo sexual incontrolável”. Imputando-se características de transtorno mental e não de natureza delitiva/criminosa ao infrator.
Correlativamente, o prazer feminino era um tabu. No passado, via-se como algo errado, pecaminoso e julgável.
Estas e outras características, sucessivamente, mesclaram-se com a noção de masculinidade tóxica e de estereótipos de gênero (ou funções sociais). A violência e o comportamento “macho” são propagados aos homens desde criança: “resolve a briga como homem”, “homem não chora”, “engrossa esta voz”, “seja forte, não vai dar uma de menininha”, etc.
Já a mulher, por muitos anos, era vista como um objeto, estava sempre disponível para saciar as vontades dos homens, ser dócil e “feminina”, além de cuidar da casa e da família. Seguiam a frase: “Mulheres são desfrutáveis, homens desfrutam”. Um horror.
Quem pode negar que estas características são diametralmente opostas e nos transformam em vítimas perfeitas?
O documentário The Mask You Live In, dirigido por Jennifer Siebel Newsom, aponta de forma impecável os males que a masculinidade tóxica provoca na sociedade. Os dados são dos Estados Unidos, mas a reflexão é bem importante como um todo (assista!).
Cerca de 21% dos homens assistem, todos os dias, vídeos pornôs com cenas de violência, 68% jogam, também todos os dias, videogames com cenas de lutas e 70% estão infelizes/chateados/agressivos ou depressivos por ter que viver sob uma “máscara” social do que pode ou não fazer. Receita para o desastre!
E – tcham tcham – mais de 35% dos homens cometeriam um estupro se soubessem que não seriam pegos!
Deplorável, vergonhoso, abjeto.
O Center for Disease Control and Prevention, nos EUA, revelou que uma em cada cinco mulheres será estuprada ao longo da sua vida. Frise-se: uma em cinco, 20% das mulheres!
No Brasil, o Atlas da Violência (IPEA/FBSP) compilou dados igualmente chocantes e que muito corrobora com o estudo americano!
Estima-se que ocorram 164 estupros por dia no Brasil, foram quase 60 mil em 2017. E se considerarmos que somente 10% deles são reportados às autoridades (dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública), o cálculo correto seria de, aproximadamente, 580 mil estupros ao ano, no país.
A maioria das vítimas são mulheres e menores de 14 anos – crianças entre 1 e 5 anos (51,2%) e adolescentes entre 10 e 14 anos (67,8%). Em torno de 70% dos abusos são cometidos dentro de casa por parentes ou companheiros. Perpassamos a lógica de que “roupa” a vítima usava, quais eram seus hábitos ou qualquer outra coisa. O problema é bem mais inerente a dialética cultural.
Se devemos questionar os agressores e não mais as vítimas, o mesmo vale para o “acreditar”, certo?
No livro Missoula, Jon Krakauer denuncia a omissão e a proteção concedida aos estupradores, por parte das autoridades policiais e judiciais da cidade universitária que dá nome ao livro. Os agressores são jogadores do time de futebol americano da Universidade de Montana, os Grizzlies. São jovens promissores, talentosos e que não poderiam ter suas carreiras ceifadas por uma condenação por estupro. Segundo o autor: “a Justiça e a universidade, não raro, fazem vistas grossas aos testemunhos das vítimas. Nos crimes sexuais, parte da sociedade se volta contra as vítimas ou tenta desacreditá-las assim que as denúncias vêm a público.”
Notamos que relatar um estupro ou agressão sexual envolve procedimentos complexos, invasivos e traumáticos. Reina-se o silêncio!
As vítimas não denunciam seus agressores, pois as “penalidades” sociais são muito altas – famílias ignoram os pedidos de ajuda ou sentem vergonha, há ceticismo pelo crime, quando o agressor é conhecido, entre outros.
Ademais, implica em inúmeros traumas físicos e mentais. Segundo o Caderno de Saúde Pública (2013), os efeitos podem ser desde infecções do aparelho reprodutivo, doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e gravidez até depressão, síndrome do pânico, tentativa de suicídio e dependência de substância psicoativas.
Conforme o estudo “As palavras desacreditadas das mulheres: falsas alegações na pesquisa sobre estupro na Europa”, as mulheres são frequentemente tratadas com desconfiança, inclusive por autoridades policiais; mesmo quando as falsas alegações representam uma média de 5% dos casos.
Além do preconceito, no Brasil, as Delegacias da Mulher são escassas, só existem em 7,9% das cidades brasileiras. No caso das delegacias comuns, o estigma social consegue ser maior – especialmente, quando a vítima é um homem.
Destarte, se poucos denunciam e os que fazem, sofrem danos irreparáveis, quais consequências provocamos para a sociedade?
O que faremos com os 90% dos casos, cujos estupradores sequer serão objetos de denúncia?
Onde estão, neste exato momento, os estupradores que não foram denunciados e muito menos condenados?
Isso é bem sério!
O “potencial” do título é a existência do nosso contexto fático. O dicionário Aurélio bem explana: “potencial é algo suscetível de existir ou acontecer”.
Isso está mais do que comprovado! A sociedade tolera o estupro a ponto de asseverar que o crime faz parte da nossa cultura.
Cultura que é a fonte/causa-raiz destes laços complexos, destes comportamentos naturalizados e de difícil mutação.
E, de forma controversa, acredito que é precisamente nesta cultura que encontraremos a solução.
Se nós criamos – nós podemos mudar.
A elaboração de leis e punições mais severas podem até parecer positivas a curto prazo, porém, transformam-se em ineficazes ao longo do tempo. Sobretudo, se não soubermos lidar com os motivos e razões do crime.
Não devemos adotar apenas um modelo maniqueísta – de “bom e mau”, “forte e fraco”. Devemos trocar informações, realizar ações de discriminação positiva e discussões interdisciplinares em âmbitos nacionais.Eduquemos as futuras gerações sobre os impactos negativos que o machismo, a misoginia, a sociedade patriarcal, a masculinidade tóxica e a cultura do estupro causam à sociedade.
Tenhamos mais união e sororidade para lidar com as questões fundamentais. Sejamos o oposto dessas estatísticas e verdadeiros agentes de transformação social. Somos a nossa cultura. E, POTENCIALMENTE, firmamo-nos a favor ou contra ela.
Sejamos uma cultura de respeito.
Foto: Tim Marshall / Unsplash
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