Em artigo para o jornal inglês The Guardian, Art Spiegelman (criador da premiada graphic novel “Maus”, um relato dramático sobre o Holocausto nazista) conta que os primeiros grandes super-heróis do século 20 foram inventados por artistas judeus como salvadores míticos contra a ameaça nazi-fascista.
Spiegelman diz que no começo do século passado, os quadrinhos eram vistos como um subproduto cultural de baixíssima qualidade, direcionados para crianças pequenas e adultos infantilizados. Eram “mal escritos, mal desenhados e pessimamente impressos”. Martin Goodman, o fundador da editora que veio a se tornar a Marvel Comics, disse a Stan Lee que era perda de tempo caprichar nas histórias ou no desenvolvimento dos personagens – bastaria encher as páginas com muita violência e poucas palavras. Com um ponto de partida tão ruim, é notável que os quadrinhos de heróis tenham se tornado tão relevantes na cultura popular dos dias atuais.
As coisas começaram a mudar de figura com a chegada do escritor Jerry Siegel e o desenhista Joe Shuster, dois jovens rebeldes judeus que sonhavam com fama e riqueza na Nova York dos anos 30, no meio da Grande Depressão. Juntos, eles desenvolveram a ideia de um alienígena super-poderoso que veio para a Terra para lutar pela Verdade, Justiça e pelos valores do “New Deal” do presidente Rooselvelt. O projeto foi recusado por muitos jornais e editoras, até serem aceitos por Maxwell Gaines, que criou uma editora com títulos muitos baratos nas bancas. Gaines comprou as 13 primeiras páginas de Superman, e arrematou os direitos do personagem por uma bagatela. O Super-Homem se tornou o modelo para um novo gênero cultural muito lucrativo, e seus criadores não ganharam nem uma fração dos imensos lucros gerados por essa indústria. A revista “Action Comics #1” foi lançada em junho de 1938 e deu origem ao império conhecido hoje como DC Comics. O lançamento foi um sucesso sem precedentes no mercado editorial americano.
A partir de então, surgiu uma pequena indústria em cima desse novo formato. Os quadrinhos começaram a ser produzidos em galpões, em muito parecidos com aqueles onde roupas eram feitas por funcionários mal pagos nos mesmos bairros de Nova York.
Essa atividade atraiu muitos homens jovens que sonhavam com o sucesso no mundo das artes. E quando a Segunda Guerra começou, se juntaram a eles mulheres, pessoas de cor e outros “estranhos” — mas demorou muito tempo para essa diversidade se refletir nas histórias e nos personagens.
Destacam-se os criadores de origem judaica nessa gênese dos super-heróis americanos. Siegel e Shuster criaram Superman. Jack Kirby e Joe Simon criaram o Capitão América. O verdadeiro nome de Maxwell Gaines era Max Ginzberg; os pais de Martin Goodman eram imigrantes de Vilna, na Lituânia. Eles e dezenas de outros se inspiraram em artistas conhecidos como Alex Raymond (“Flash Gordon”) Hal Foster (“Tarzan” e “Príncipe Valente”) ou Milton Caniff (“Terry e os Piratas”) para criar uma nova geração de personagens, com identidades próprias e grande apelo popular. Tocha Humana e Namor surgiram nessa primeira onda, personagens densos e atormentados por suas origens e propósitos.
Em plena Segunda Guerra, esses artistas e suas editoras recebiam uma enxurrada de cartas de ódio e telefonemas obscenos, de pessoas que eram admiradoras de Hitler e do fascismo. Em uma edição de março de 1941, o Capitão América invade o quartel-general nazista e nocauteia Adolph Hitler com um soco no queixo! A maior preocupação do editor Martin Goodman era que alguém de fato matasse Hitler antes da revista chegar às bancas de jornais.
O Capitão América se tornou o maior recrutador do exército americano, num momento em que os Estados Unidos ainda estavam em dúvida sobre participar do conflito. Grupos fascistas como o German American Bund e America Firsters jogaram bombas nos escritórios das editoras, e os funcionários atendiam telefonemas onde pessoas gritavam “Morte ao Judeus!!”. O prefeito de Nova York na época, Fiorello La Guardia, defendeu os criadores de quadrinhos publicamente, dizendo que a cidade de Nova York protegeria seus artistas.
Spiegelman termina seu artigo dizendo que o arqui-inimigo do Capitão América, o Caveira Vermelha, ressurge hoje como “Caveira Laranja”, uma clara referência ao presidente Donald Trump.
Mais de 80 anos depois da criação desses heróis que combatiam o nazismo, temos a série “The Boys”, exibida pela plataforma de streaming Amazon Prime Video. A série é baseada nos quadrinhos de Garth Ennis e Darick Robertson, e apresenta um mundo onde super-heróis se comportam como celebridades, estrelando filmes de Hollywood como eles mesmos e bombando nas redes sociais.
E, ao contrário do Superman, Capitão América ou Mulher Maravilha, esses heróis não apresentam grandes princípios éticos ou escrúpulos morais. São em grande parte cínicos, egocêntricos e hipócritas. São heróis sem berço, literalmente falando. Foram fabricados para possuir poderes, mas não “merecem” esses poderes. São pessoas comuns, com todos os defeitos de pessoas comuns, que se tornam perigosas por disporem de habilidades sobre-humanas. Os “heróis” em The Boys são paródias sinistras dos heróis clássicos: há um “genérico” do Superman, outro do Aquaman, outra da Mulher Maravilha, etc.
A série, brilhante, é um contraponto muito importante à visão de Spiegelman em seu artigo. Esses “supers” de The Boys são ferramentas de um Estado autoritário, e não paladinos da Justiça. Não estão preocupados em fazer o bem, estão preocupados com o número de likes de seus selfies no Instagram, com a bilheteria de seus filmes ou com o faturamento do merchandising. Combatem o crime como chamariz publicitário para suas imagens, que são cuidadosamente construídas por uma equipe de marketing.
Em tempo: o ensaio de Art Spiegelman sobre os quadrinhos seria a introdução do livro “Marvel: The Golden Age 1939-1949”, com lançamento previsto para setembro. Mas o autor acusou a Marvel de censura, justamente por comparar Donald Trump com o vilão fascista Caveira Vermelha. Spiegelman disse que Isaac Pelmutter, presidente da Marvel Entertainment, ligou para pedir a remoção da citação a Trump. Pelmutter alegou que a empresa queria se manter apolítica, mas Spiegelman lembra que o executivo é um amigo de longa data do presidente americano, sócio do resort de luxo Mar-a-Lago (que pertence a Trump) e grande doador para a campanha do republicano.
Spiegelman recusou-se a alterar o texto, e publicou o original na íntegra no jornal The Guardian. Assim, ele mostra que não é preciso ser o Capitão América para nocautear um tirano com um soco no queixo…
Foto: Reprodução
** É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita. O Jornal 140 não se responsabiliza pela opinião dos autores deste coletivo.