“Não seja comum”.
Essa pequena frase ficou na minha cabeça por dias, depois de eu ter assistido a série “The Bletchley Circle: San Francisco” (Assistam!). A série de suspense acompanha a vida de quatro mulheres que ocuparam altos cargos na 2ª Guerra Mundial, em equipes de decodificação, espionagem, construção de armamentos e estratégia, e que, após o conflito, com o retorno dos homens, foram dispensadas da atuação em atividades que envolvessem segurança nacional.
Decidiram, então, iniciar um trabalho de elucidação de crimes considerados irresolúveis, para provar o valor e a capacidade que elas possuíam, especialmente, para a sociedade.
A narrativa traz um elemento muito interessante: analisar a complexa situação das mulheres que ocuparam posições com responsabilidades ainda mais significativas que seus maridos e/ou conhecidos durante a guerra, e que, para o “bom funcionamento social”, tiveram que permanecer em silêncio no pós-guerra, por exigência dos seus governos.
A realidade pode até ter sido um pouco diferente da narrativa da série, especialmente porque a maioria dos que participaram dos programas de segurança nacional, em territórios inimigos, não voltou. Contudo, os livros “The Wolves at the Door: The True Story of America’s Greatest Female Spy” (Judith L. Person), “Sisterhood of Spies” (Elizabeth P. McIntosh) e “Young, Brave & Beautiful” (Tania Szabo)” bem comprovam o papel fundamental que essas mulheres ocupam na história.
Casos como o da Virginia Hall, Princesa Noor-un-Nisa Inayat Khan, Violette Reine Elizabeth Bushell, Barbara Lauwers, Amy Elizabeth Thorpe, Maria Gulovich, Julia McWilliams Child, Marlene Dietrich, Elizabeth P. McIntosh, Genevieve Feinstein, Mary Louise Prather, Juliana Mickwitz, Odette Sansom Churchill, Josephine Baker, Hedy Lamarr, Nancy Grace Augusta Wake, e de muitas outras mulheres, inspiram.
Elas são as personificações do “não seja comum”; ou melhor, o de ser o que quiser e não o que se espera de você. Inclusive, quanto a participação em serviços ditos como, majoritariamente, masculinos.
Entre as inúmeras espiãs conhecidas, Virginia Hall se destaca, por conta do vasto conteúdo que a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA) dispõe a seu respeito, em seu site. Seguem alguns trechos que merecem menção (livre tradução):
“Natural de Baltimore, Virginia Hall Goillot é, talvez, mais conhecida por seu serviço heroico nas Operações Especiais Executivas Britânicas e no Escritório Americano de Serviços Estratégicos, durante a 2ª Guerra Mundial, contudo, é na CIA, que ela passou mais tempo. Uma das poucas mulheres relativamente seniores do serviço clandestino, ela trabalhou em vários setores da CIA até a sua aposentadoria compulsória, em 1966, quando tinha 60 anos. Virginia fez de TUDO, apesar de ter uma perna protética de madeira, que ela chamou de Cuthbert”.
“O historiador britânico M. R. D. Foot a apelidou de “agente indomável com um pé de bronze”. O oficial do Executivo de Operações Especiais (SOE), Philippe de Vomécourt, escreveu que ele serviu na França com essa “mulher extraordinária…com uma perna de madeira”. O autor francês Marcel Ruby disse que ela perdeu a perna em um acidente com um cavalo. Outros a fizeram perder um membro depois de cair embaixo de um bonde. O ex-oficial da CIA, Harry Mahoney, descreve uma missão da OSS, na qual ela saltou de paraquedas atrás das linhas inimigas com sua “perna de pau na mochila”. A autora e ex-oficial da OSS, Elizabeth P. McIntosh, escreveu que ela desembarcou na França de barco. A Gestapo, polícia secreta nazista, colocou sua imagem em um cartaz de “procurada” e, uma vez, como a “mais perigosa entre os espiões aliados” (Judith L. Pearson. Guilford, CT: The Lyon Press, 2005, página 324).
Sua reputação fala por si. Virginia escolheu um caminho cheio de sacríficos e dificuldades, mas sua vontade de atuar no meio diplomático, impulsionou seu desejo. Teve que se condicionar a andar sem mancar para não chamar atenção, aprendeu mais de quatro idiomas, ajudou a treinar batalhões para a resistência francesa, foi correspondente e informante, livrou espiões que haviam sido capturados e executou a maior rede de auxílio em território inimigo.
No final, “os britânicos fizeram dela, membro do Império Britânico. Os Estados Unidos, concederam a ela, o reconhecimento “Distinguished Service Cross”, por heroísmo extraordinário em conexão com operações militares contra o inimigo, a única mulher civil a receber essa medalha pelo serviço da Segunda Guerra Mundial”.
Infelizmente, pouco se conhece sobre o Brasil e suas espiãs também. Temos, como exemplos, Estela Borges Morato e Jean Sarkis.
A Conferência Nacional de Polícia Política, em 1943, tratou de assuntos como espionagem, contraespionagem, métodos de reconhecimento de agentes inimigos, técnicas de investigação e de interrogatório, e discutiu, sincronicamente, se o país poderia conceder às mulheres o papel de espiãs. Esse assunto foi muito bem analisado no artigo “Gênero e Serviço Secreto”, do autor Thiago da Silva Pacheco.
Essa conferência acabou chegando a uma despicienda conclusão: “Muitos dizem, sorrindo, que a mulher é um mal necessário. Não se pode viver com elas, mas tampouco viver sem elas. Esta última afirmação parece especialmente acertada no que se refere ao trabalho de espionagem. Verá o senhor que as mulheres tomavam uma parte importante em quase todos os trabalhos de espionagem mais importantes registrados na história” (Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Conferência Nacional de Polícia Política. Fundo DESPS, Notação 921, página 55).
Complementa Thiago: “Dependendo de seu desempenho, [as mulheres] poderiam alcançar status enquanto agente importante numa instituição fundamental para a sustentação do Estado, e até mesmo gozar de influência e respeito entre autoridades policiais e líderes dos grupos sociais postos sob vigilância”.
A título de comparação, em 1945, o governo brasileiro infiltrou Jean Sarkis no Partido Comunista. Ela acabou sendo presa como uma subversiva e, para não ser descoberta, recusou-se a usitar suas conexões com policiais para sair da prisão. Ficou encarcerada por dois anos, sofrendo severas punições.
Ao sair, Jean conseguiu o respeito do Partido Comunista e, ao mesmo tempo, uma posição de destaque na Polícia Política, sendo considerada uma das espiãs mais bem-sucedidas do país:
“A requerente, de fato, colaborou, eficiente e patrioticamente com as autoridades deste Departamento (…) nas suas tarefas, se houve com tão elevado espírito de renúncia que, por ocasião da prisão da comunista Maria Afonso Martins, em companhia de quem se achava, e do que resultou a condenação de ambas, preferiu não revelar sua posição neste Departamento, evitando, assim, que a situação daquela agitadora fosse atenuada. Cumpriu mais de dois anos de prisão, durante a qual continuou prestando relevantes serviços, pois, elevada à condição de heroína do partido, suas possibilidades em informar aumentaram, ensejando este Departamento diligências proveitosas” (Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Fundo Polícias Políticas. Pront. GB 22.327).
Ou seja, no Brasil ou no mundo, independentemente de quais foram as razões que possibilitaram às mulheres tais posições de trabalho – que, definitivamente, no início, eram puro retrato de uma estrutura social machista e conservadora –, permitiu que muitas delas pudessem quebrar tabus, abrir o mercado de trabalho para outras e redefinir seus papéis sociais à época.
Em 2018, quando Gina Haspel foi nomeada a primeira diretora da CIA, em meio a muita discussão por conta da sua trajetória profissional, ela admitiu, enfaticamente, sua dívida para com todas as “heroínas que nunca buscaram aplausos do público”. Por estas mulheres, mencionando Virginia Hall, foi possível sua nomeação, que desafiou barreiras e estereótipos de gênero.
Assim, apesar de serem espiãs nunca vistas, são parte de uma parcela de mulheres que segue nos permitindo ampliar nossos horizontes.
Precisamos dessas mulheres, cada vez mais.
Não sejamos comuns.
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