Em seu livro “The Age of Surveillance Capitalism – The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power”, a autora Shoshana Zuboff define o termo logo na introdução: “Ca-pi-ta-lis-mo de Vi-gi-lân-cia”, substantivo. 1) Uma nova ordem econômica que considera a experiência humana como matéria-prima gratuita para práticas comerciais ocultas de extração, previsão e vendas; 2) Uma lógica econômica parasitária onde a produção de bens e serviços está subordinada a uma nova arquitetura mundial de modificação de comportamentos; 3) Uma mutação selvagem do capitalismo marcada por imensas concentrações de riqueza, conhecimentos e poder, em níveis inéditos na história humana; 4) A estrutura fundamental de uma economia baseada em vigilância; 5) Uma ameaça tão significativa para a natureza humana no século 21 quanto o capitalismo industrial foi para o mundo natural nos séculos 19 e 20; 6) A origem de um novo poder instrumental que exerce domínio sobre a sociedade e apresenta tremendos desafios para a democracia do mercado; 7) Um movimento que que busca impor uma nova ordem coletiva baseada na certeza absoluta; e 8) Uma expropriação de direitos humanos essenciais que pode ser compreendida como um golpe de cima para baixo: a derrubada da soberania das pessoas.
Zuboff diz que o capitalismo de vigilância funciona através da oferta de serviços “gratuitos” que bilhões de pessoas usam de modo alegre e despreocupado, e que permitem que os donos desses serviços monitorem o comportamento dos usuários com um altíssimo (e alarmante) nível de detalhes. E na maior parte do tempo, essa extração de dados sensíveis ocorre sem o conhecimento ou permissão das pessoas.
A autora diz que o capitalismo de vigilância explora as experiências humanas como matéria-prima gratuita, que é minerada e transformada em dados comportamentais. Uma parcela desses dados é usada para aprimorar os serviços, mas o restante alimenta processos produtivos que usam “machine intelligence” para prever o que as pessoas vão fazer agora e no futuro. Esses produtos de dados pessoais são então comercializados em um “mercado de futuros” de informações comportamentais. Os capitalistas de vigilância estão se tornando imensamente ricos com esse comércio de dados, já que um grande número de empresas paga muito bem por essas previsões de comportamento.
Nesse cenário, empresas como Google, Facebook, Amazon e outras aparecem como predadores ferozes que fazem os capitalistas dos séculos 19 e 20 parecerem personagens românticos. Esses novos capitalistas lucram arrogantemente com apropriação de dados privados das pessoas, como se fosse um recurso natural gratuito, de coleta livre. E usam métodos patenteados e secretos para processar esses dados, mesmo quando os usuários negaram explicitamente a permissão para isso. Para completar, os produtos lucrativos são obtidos por meio de tecnologias deliberadamente ocultas, que se aproveitam da ignorância dos usuários.
Para tornar as coisas ainda mais complicadas, esse modelo de exploração emergiu a partir de um território praticamente sem leis. O Google decidiu por conta própria que ia digitalizar e arquivar todos os livros já publicados, sem se preocupar com questões de direitos autorais. Também decidiu que ia fotografar todas as ruas e casas do mundo, sem pedir permissão a ninguém. O Facebook criou os “Beacons”, relatórios de atividades online das pessoas, que eram publicados na timeline de outras pessoas, sem o conhecimento do usuário. Esses e muitos outros exemplos de violência digital na vida privada das pessoas, usando o lema “é mais fácil pedir desculpas depois do que permissão primeiro”. As empresas avançam agressivamente na coleta de dados pessoais, e quando são flagradas fazendo isso, emitem “comunicados oficiais” se retratando e prometendo melhorar. Mas não melhoram, e ainda criam novos meios para continuar com a mesma atividade antiética e ilícita.
É essa combinação de vigilância estatal com o reforço das empresas capitalistas que cria a atual divisão na sociedade humana: os “observadores” e os “observados”, vigilantes e vigiados, exploradores e explorados (o capitalismo em sua essência clássica). Essa dinâmica atual tem consequências muito funestas para a democracia, porque essas assimetrias de conhecimento se transformam em assimetrias de poder. As sociedades democráticas ainda mantêm alguns mecanismos de controle e supervisão sobre as atividades dos governantes, mas as mega-empresas capitalistas não estão sujeitas a praticamente nenhum controle.
Essa situação não oferece uma solução simples, porque mexe justamente com a lógica de acumulação de riquezas do capitalismo de vigilância. Não existe a menor possibilidade de “auto-regulamentação” por parte dessas empresas. E Zuboff escreve em seu livro que exigir proteção à privacidade por parte dos capitalistas de vigilância seria o mesmo que exigir que o velho Henry Ford no começo do século 20 produzisse cada automóvel “Model T” à mão, um por um. É como pedir que uma girafa encolha seu pescoço, ou que uma vaca pare de pastar. Essas exigências são ameaças existenciais aos mecanismos básicos que sustentam esse modelo de exploração econômica.
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