Mais uma vez, um sabor amargo na boca. Uma daquelas sensações de que erramos de novo. À primeira vista, não faria sentido que um filme de uma delicadeza e, ao mesmo tempo, de uma intensidade tão grande como A vida invisível encontrasse portas fechadas entre os indicados para o Oscar de filme estrangeiro. Turbinado com a presença, ainda que muito curta da Fernanda Montenegro, e nas hábeis mãos de Karim Ainouz, não deveria ser um dos recusados pela Academia em Hollywood. Mas foi!
Assim como há várias razões para que tivesse entrado na short list, há outras para justificar a exclusão. Por que ele deveria ser um dos escolhidos? Em primeiro lugar, por colocar mais uma vez em cena um dos temas protagonistas destes nossos tempos: o da desigualdade no tratamento das oportunidades entre mulheres e homens. A imposição do poder hierárquico e quase militar masculino sobre as ambições femininas. Em segundo lugar, porque ele trata um bem quase sagrado, que é o sentido de lealdade, representado no filme pelos sentimentos que une a vida de duas irmãs, algo que não é mais tão abundante hoje em dia
E há outras razões de natureza puramente de linguagem cinematográfica, que eu não me sinto preparado para comentar. Mas com foco apenas naquelas duas razões, a desigualdade e a carência de lealdade, eu arrisco dizer que eles são temas tão atuais como onipresentes, ou seja, coisa que a gente encontra fartamente aqui e ali. Mas convenhamos, o que se espera de obras que merecem prêmios é mais do que compaixão e sentimentos de solidariedade. Espera-se, sobretudo, diferenciação e poder inovador.
E é exatamente por isso que torci pela escolha de Bacurau. Apesar de uma leitura apressada de alguns, dizendo que se trata apenas de mais um filme sobre a estética da fome e desamparo de populações nordestinas pobres, abandonadas à sua própria sorte, ele é muito mais do que isso. Além dessa leitura rasa e apressada, Bacurau tem o dom dos filmes com uma intenção e uma linguagem universais, como poucas vezes tenho visto em nosso cinema. O filme fala de uma ferida que nos aflige atualmente, e a paisagem nordestina, que no filme nem consta do mapa, é apenas uma paisagem ilustrativa para tratar desse tema. Uma ferida narcísica de certos segmentos sociais de vários países que não aceitam que o povoamento do planeta integra e entrelaça seres humanos muito diferentes, ou melhor, que não aceitam a coexistência ou a coabitação planetária com os deserdados da Terra.
Bacurau é um brado pungente contra essa ferida e a favor do despertar do poder de reação dos que sabem que não podem e não querem ser se exterminados, nem excluídos do mapa onde todos vivem. O filme não mostra um movimento de contestação nativa ingênua e adolescente, mas uma saudável iniciativa de ocupação do próprio espaço vital.
Quando vi Bacurau pela segunda vez, comecei ao ouvir uma voz interna que cantava: “Se entrega Corisco/Eu não me entrego não/Eu não sou passarinho pra viver/Pra vir lá na prisão../Não me entrego a tenente/Não me entrego a capitão”. E que me acompanhou até o fim do filme.
Bacurau, junto com Parasita, Coringa, Odisseia dos tontos …é parte dessa manifestação universal recente, mas historicamente sem data, da nossa afirmação como sujeitos de nossos destinos.
Que pena, ainda não foi desta vez.
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