Toda mulher já se deparou com o “ser ou não ser mãe”, questão com a qual a convivência pode não ser harmônica: desde meninas são presenteadas com bonecas e ouvem que “já podem casar” ou “vão ficar pra titia”. Respostas sobre seus planos são exigidas por familiares, colegas, pretendentes românticos, chefes ou recrutadores em processos seletivos. Outrora considerada a finalidade da existência feminina, a maternagem segue romantizada e por vezes compulsória, apesar da óbvia incompatibilidade com certos desejos. Será que tal panorama de pensamento é indolor ou condizente com a realidade?
Elisabeth Badinter, em sua obra Um Amor Conquistado, expôs a desonestidade do discurso determinista sobre o amor materno. A filósofa realizou um apanhado histórico a respeito das condutas maternas, exibindo que não são universais, mas socioeconomicamente variáveis e diversas tanto na questão das ambições quanto das frustrações.
Assim, com o desmantelamento da concepção deste sentimento enquanto inato ou instintivo, há a conclusão de que ele é contingente, podendo ser frágil, forte, finito e até mesmo inexistente.
A psicanálise apresenta contribuições a respeito da temática. O pediatra Donald Winnicott foi um dos principais estudiosos dela e da infância. O médico criou o conceito de “mãe suficientemente boa”, sugerindo a impossibilidade da perfeição, idealizada pelo senso comum. Segundo W., até o melhor indivíduo apresenta sentimentos ambivalentes quanto ao bebê: uma questão de amor e ódio.
Os sentimentos negativos, condenáveis pelos superegos, podem decorrer de uma série de razões simplesmente cotidianas. Vale descrevê-las grosseiramente:
Seu início é anterior à fecundação, com as possíveis dificuldades para engravidar, com consequente ansiedade e ferida narcísica. Em contraponto, existem as reproduções indesejadas interrompíveis – que, fora da óptica religiosa, estão longe de serem consideradas milagres.
Com a gestação, a existência da mulher/pessoa grávida se apequena em carregar a vida e ter preocupações com ela. O bebê é uma ameaça à saúde. É preciso realizar acompanhamento médico desorganizador de rotinas e são necessárias as restrições comportamentais e alimentares. Ademais, na atual conjuntura, são raros os casos nos quais a maternagem não signifique adeus ao vínculo empregatício e enorme desvantagem no mercado de trabalho.
Posterior a esse longo período por vezes turbulento, passada a imensa dor do parto ou sua operação cirúrgica invasiva, eis a permanente separação da vida entre antes e depois da maternidade. Antes da elaboração desse marco já ocorre o confronto com a fantasia, o abismo entre o filho imaginário e o real. Este, até então um estranho, chora, fede, vomita, defeca, adoece, machuca ao mamar e permanece acordado às noites.
Incomunicável e indiferente, o infante comporta-se alheiamente à devoção parental. Como Freud descreve, é “vossa majestade bebê”, em torno de quem todos os esforços abnegados orbitam.
As insatisfações inexoráveis resultam em culpas e amarguras. Porque o fazem, uma vez que quando nasce um filho, nasce uma mãe, em constante amadurecimento junto a ele? Retornando ao psicanalista, os polos sentimentais não se anulam. A multiplicidade sentimental é um impasse somente se é paralisante ou predominantemente negativa.
Essa exposição, junto à desconstrução dos autores, é essencial para trazer à tona uma narrativa real a respeito da maternidade. Muitas pessoas não serão mães, por opção ou não. As que serão – principalmente se solos, negras, LGBTs e/ou pobres – tornar-se-ão vítimas de diversos estigmas, ao mesmo tempo que donas de inúmeras expectativas e muitos sofrimentos. A autorização para expressar o considerado indizível, junto à empatia ao conhecer o discurso alheio, é o caminho libertador para a promoção de saúde mental e da possibilidade de escolha.
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