Acabou de acontecer e deixou muita gente sem entender. Um filme em outra língua, que não inglesa, levar a estatueta do prêmio maior da noite.
E olha que havia concorrentes de peso na disputa.
Há um mês, mais ou menos, eu havia prognosticado esse resultado junto a pessoas próximas. Não tive coragem de fazer isso publicamente. Que pena ter sido covarde!
Eu tenho uma tentativa de explicação sobre o porquê do prêmio. Não é original porque já ouvi e li coisas semelhantes a respeito. Mas vou tentar revelar o que eu penso. Os demais concorrentes (Adoráveis mulheres, 1917, Ford versos Ferrari, Coringa, Era uma vez…em Hollywood, O irlandês e Jojo Rabbit) eram produções que mereciam estar na disputa pelo pódio. Todos eles são grandes filmes. Assisti a todos, alguns até duas vezes, ou três como o Coringa.
“Parasita”, porém, não é apenas um belo filme, que se encerra nos créditos.
Ele continua quando saímos do cinema. No metrô, na CPTM, em casa, no sacolão… “Parasita ” é uma unidade de medida, que revela as distâncias sociais que certos liberalismos impõem. Como aqueles de que Celso Lafer fala num artigo no Estadão (18/02/2020 – pag.2). “Entende-se o valor da liberdade, que alimenta o sonho humano, quando ela é cerceada ou corre o risco de ser cerceada pelo arbítrio da coerção e da prepotência e pelas intolerâncias discriminatórias”.
E não é exatamente isso que a gente vê no filme? Um caminho, ainda que estranho, para escapar do “império da necessidade”. Da liberdade cerceada pela intolerância discriminatória. Quantos dos votos que elegeram o filme não vieram de um sentimento inconfessável de almas feridas por um dolorido débito social? Quantos dos que votaram no “Parasita” não viram dentro do próprio Estados Unidos coisas como amostras de Seul? Para além do exuberante desfile no red carpet, há parasitas de prontidão, aguardando alguma oportunidade de romper com o império da necessidade.
Parasita em sua etmologia grega é uma palavra composta por “pará” (ao lado, junto de) e “sîtos” (em tempos pré-homéricos designava grãos e trigo, ou seja, alimentação). A palavra nos transporta para uma longínqua era quando parasitas eram bem vindos. Lá bem atrás, na Grécia antiga, o centro cívico e religioso era chamado de Pritaneu. Onde ardia sempre o fogo da Héstia, que zelava pela família e pelo lar. Nesse local, reuniam-se os pritanes e seus convidados parasitas. Mas a máquina de história se incumbiu de transmutar o parasita em chupim. Hoje ele é o espelho do filme. Ou o inverso.
O sentimento de um certo inconformismo que habita em muitos de nós sabe que o chupim não é traço pervertido de nossa personalidade. É algo de outra natureza, humana e saudável por excelência. O chupim-parasita é a manifestação de um sintoma de que falava Saint-Exupéry na Terra dos Homens. A triste e cruel constatação de que existe um Mozart assassinado em cada uma dessas criaturas; essas que vivem nos porões, nas áreas maltratadas das franjas da sociedade. Em vários cantos do mundo, de Marsilac a Cafarnaum.
Essa é a grande angular que nos deixa ver “Parasita ” como se ele acendesse uma luz amarela. Como a sinalização de que há liberalismos e liberalismos, nas palavras de Celso Lafer. Que mostra que o filme continua muito além dos créditos no fim da sessão e invade a nossa vida e alimenta nossas preocupações com a dinâmica da sociedade. Por tudo isso, não acho que o prêmio tenha sido algo tão surpreendente assim!