“Teatro é muitas coisas. Para a filosofia do teatro, diz respeito ao acontecimento teatral. E acontecimento é convívio, poiesis e espectação. Por viés estético social, é construir comunidade. Ao semiótico, é ritual, alquímico e sagrado que cura, transforma para curar e faz com esferas invisíveis se tornem visíveis”.
Assim o artista Rafael Abrahão, membro fundador da companhia de teatro, visualidades, música e poesia Santa Cia, expõe possíveis respostas à pergunta “o que é teatro?”
Rafael atua há 14 anos, já realizou 23 peças. Sua mãe, cujo apoio foi fundamental, percebeu sua veia artística quando pequeno. Foi aos 09 anos que, no colégio, começou a fazer teatro:
“É engraçado pensar que escolhi seguir a carreira em que o primeiro personagem que fiz foi uma árvore. Ao mesmo tempo que tem um certo tom inicialmente cômico, mostra que as árvores criam raízes, germinam, vivem os ciclos da natureza”
Paralelamente aos estudos escolares, cursou o Teatro Escola Macunaíma, do infantil ao profissionalizante. Na época, já tinha vontade de dirigir e escrever:
“Quando saí da caixinha da escola, resolvi tudo o que precisava resolver e comecei a escrever. E escrevi sobre esse processo de mudança. Fiz poemas. Foi quando meu primo sugeriu que eu fizesse um blog. E o criei, convidei três amigos. Depois de um mês, fui lendo as poesias e percebi que dava para fazer uma peça dali. Então, bem neste momento de divisão, escrevi meu primeiro espetáculo. E comecei a fazer o meu teatro. Colocar energia para uma coisa nascer é muito sério, demanda muito de você, é um exercício de parto.”
Outro ponto emblemático de sua trajetória foi assistir à peça Waymor y Cacilda: o Robogolpe de 64, do Grupo Oficina, em junho de 2014:
“Assisti à peça sem pretensão, sem saber como é o teatro, sem ter lido sinopse (aliás, vou ao teatro sem ler sinopses). Essa peça mudou minha vida, meu jeito de ver teatro, de vive-lo, olhar para as coisas, mudou tudo. Foi grupo todo, o espaço, aquelas pessoas, aquela forma de olhar, a vibração emanada, percebi que achei o meu caminho.”
Então, prestou vestibular, ingressou em licenciatura na UNESP, onde teve formação de arte educador. Na graduação, teve contato com psicologia da educação, leis e planos nacionais de cultura, enfim, “pensou na ligadura do teatro não restrita à cena, mas enquadrada na vida”. Lá, descobriu uma palavra que muito traz: antropofagia.
“Não tem como definir antropofagia. É uma prática ritualística central dos povos que a praticavam, ligada a questões espirituais. Ela consiste em comer o semelhante. Oswald de Andrade e a turma de 1928 – que deriva do Movimento Pau-Brasil, derivado da semana de 22 – começaram com o Manifesto Antropófago e uma série de quadros iniciadas com o Abaporu, da Tarsila do Amaral. E o q vai vir é uma antropofagia de cultura, a gente está trocando, a gente está se comendo. Confunde-se muito com antropofagia apropriação cultural, mas são coisas bem diferentes. A apropriação é uma via de mão única em você vem, pega algo da cultura e capitaliza isso. Se eu venho e troco com você, geramos uma terceira coisa. A gente está se autodevorando, fazendo uma troca, está acontecendo alquimia, transformação. Paulo Freire tem um texto chamado “A importância do ato de ler” em que fala sobre as relações do ler e do escrever. Pois, para conseguir ler, tem que saber ler o mundo. Para mim, ler o mundo se dá no comer o mundo. Antropofagia é comer.”
Conversamos, então, sobre o trabalho. Teatro coloca tanto o alimento físico na sua mesa, como também é “o alimento da alma”. Dada a conjuntura atual, expôs os desafios que que o setor da cultura terá neste quesito:
“Agora, nós artistas teremos que entender como está se dando a vida, mais tecnológica e virtual. O teatro é imortal e mundial, existe há milênios. E ele terá que passar por essa, se reinventar. Esse momento desafiador pode ser interessante para traçarmos novas economias. Precisamos ser antropófagos com ele e com a internet, ver as alquimias que surgirão, ser surpreendidos.”
Enfim, ele deixa um parecer:
“A pandemia trouxe a oportunidade de refletir sobre o quão desigual somos. Que esse momento ímpar que estamos vivendo seja uma oportunidade de renascimento para nós enquanto coletividade, enquanto natureza. Espero que a gente escute mais os povos da terra, escute mais o todo. Que esse momento seja um momento em que a gente realmente consiga fazer o esforço de renascer. E não é fácil. Nascer não é fácil. Morrer também não é. Então, que a gente consiga realizar esta operação alquímica e xamânica nas micro e macro esferas que habitamos.
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Em breve: Podcast Bemdita!