“Estou impura”, declara a personagem Gayatri (Radhika Apte) no filme “Padman” (tem na Netflix!), simplesmente por estar menstruada. Além de ser baseado em uma história real, o drama é muito interessante por observar os aspectos da cultura indiana quanto ao período menstrual: questões de saúde da mulher cis, sororidade, empatia e lugar de fala. Tudo isso misturado com empreendedorismo social, vale a pena assistir!
A narrativa demonstra como diversos grupos sociais não conseguem nem falar a palavra menstruação com naturalidade. Substituem por “aqueles dias” ou “aquilo que acontece com a mulher” – por puro tabu e falta de informação. O medo da própria palavra aumenta o medo da coisa em si (alô, Harry Potter), mesmo quando a menstruação é um fenômeno biológico e que necessita ser dialogado.
Na Índia, de acordo com o discurso do “Padman” (Arunachalam Muruganantham) no Ted Talks (2012), os absorventes higiênicos eram muito caros – vendidos em dólares ou libras (um pacote do produto equivalia a compra de leite por um mês). Desta forma, as mulheres que não tinham condições financeiras, especialmente nas zonas rurais, não possuíam a opção de escolha entre absorventes ou outro item funcional – utilizavam-se de toalhas, folhas secas, areia e até cinzas. Por causa do tabu instituído nessas regiões, as que possuíam toalhas não podiam deixá-las à vista em varais, nem quando estavam sendo lavadas, o que não permitia que secassem por completo.
De forma complementar, em entrevista concedida para a BBC (2014), Manju Balunique, indiana, confirmou como as antigas tradições podem causar graves problemas de saúde às mulheres cis: “Minhas irmãs me ensinaram o truque para manter aquelas toalhas manchadas sob outras roupas para que nenhum homem percebesse. Não podíamos arriscar colocá-las sob o sol para secar completamente. O resultado era que elas nunca secavam, deixando um fedor horrível. Essa toalha pouco higiênica era usada várias vezes. A falta de água tornava o processo ainda mais difícil e pouco sadio. E isso não mudou muito para a maioria das mulheres indianas”.
Atualmente, apenas 18% das mulheres têm acesso a absorventes ou de algum outro método sadio na Índia. O preço é a principal barreira, porém o preconceito impede a escuta sobre as preocupações sanitárias, como infecções e doenças graves. Além disso, há uma série de mitos que envolvem a menstruação, por exemplo, que durante o período, por estarem “amaldiçoadas”, devem ficar sem contato e fora de casa – inclusive, na hora de dormir.
As consequências, para além das medicinais, são devastadoras. Estima-se que as mulheres, por crenças de isolamento menstrual, perdem, aproximadamente, dois meses de todos os anos, fora de casa e fazendo absolutamente nada. Dois meses de doze meses! Ademais, as meninas deixam de ir à escola, o que aumenta a evasão escolar; as mulheres deixam de ir para a faculdade ou trabalho, o que dificulta a inserção das mulheres – em geral – no mercado de trabalho e sua independência financeira (Documentário Absorvendo o Tabu, 2019).
Menciono a Índia pelo filme, todavia a dimensão é em escala global e multifacetada – mulheres pobres, moradoras de rua, presidiárias, entre outras. Como esperamos que se oferte, em larga escala, um produto fundamental para a saúde da mulher quando em muitos lugares nem foi implementado saneamento básico? Como iniciar a discussão que absorventes não são ecologicamente corretos se nem há a opção de escolha em certas regiões? Como levar a informação e conhecimento dos métodos saudáveis se não é estabelecido como pauta prioritária do governo?
A falta de diálogo por tabu (resquício histórico de crenças e religiões) se transformou em falta de informação. Em todos os níveis, de Estado até dentro da família. Transformou-se em sentimentos que milhares de mulheres carregam diariamente – de vergonha, de culpa e até de “nojo”.
Assim, não é surpresa que, ainda hoje, a possibilidade de se adquirir um absorvente é um privilégio. A oportunidade de se ter assistência médica contínua e humanizada é um privilégio. A troca de conhecimento é um privilégio.
Não é surpresa que, no presente, a UNICEF estima que 1 em cada 10 meninas falta à aula, porque está menstruada, no continente africano. Em 14.724 escolas públicas indianas, apenas em 53% delas há banheiros femininos e, por isso, 20% das mulheres deixam de estudar no país. No Malawi, um absorvente custa o equivalente a um dia de salário mínimo. No Quênia, 2/3 da população não conseguem comprar absorventes. Há 30% de evasão escolar no Afeganistão e no Nepal em decorrência da menstruação. No Reino Unido, mais de 137 mil meninas não vão para a escola durante o período menstrual. No Brasil, perdem-se 45 dias de aula, a cada ano letivo, por falta de acesso a absorventes (Global Citizen, 2018 e Câmara dos Vereadores do Rio, 2019).
Do mesmo modo, não é surpresa descobrir que, no passado, quem inventou o absorvente foi uma mulher negra, Mary Beatrice Davidson Kenner. E que até então, os movimentos sociais, o empreendedorismo social e as organizações foram os que tentaram suprir as lacunas.
Portanto, inspirados na mudança, sejamos – individualmente – a quebra de tradições que prejudiquem a saúde da mulher. Que sejamos – coletivamente – o conforto em discutir o natural, parte da biologia da mulher cis. Que – todos – lutemos pela prioridade à saúde e auxiliemos nas futuras inovações. Que – nós, mulheres – estejamos presentes umas para as outras, sem medo ou vergonha da palavra.
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