Esta é a época para aprender o que ainda não entendemos tão bem.
Um exemplo? Há quem sempre foi a agências de banco e caixas eletrônicos e hoje quer entender como é possível que sua neta de 20 anos faça tudo de que ela precisa apenas com o celular na mão. “Menininha esperta ela. Acabou de digitalizar minha vida”.
Meu tio viúvo lembra saudoso do doce de abóbora e do pudim de leite (com furinhos) em que tia Adalgisa era mestra. “Desculpe-me Adalgisa, mas a Panelinha da Rita Lobo me mostrou o caminho, consegui fazer. Acho que você ficaria orgulhosa. Ou será que com medo de perder essa função? ”. Mas, lá bem dentro da sua cabeça, meu tio lutava contra um sentimento duplo. Uma indescritível compulsão pra gritar: tá vendo, querida, eu posso. Quase como se fosse um Viagra culinário. Mas também uma saudosa e deliciosa memória à la Ratatouille, da Adalgisa. Acima de tudo, porém, um atestado quase heroico do tipo: “estou empoderado também.”
Para muito além dos grupos de risco apenas, mas entre os que não se descabelam no isolamento, surgem as habilidades que estavam inibidas, reprimidas, escondidas dentro de nós. Como esses programas no computador que só começam a funcionar quando são executados, inicializados. Pois é, entre as pessoas que não entraram em desespero com o confinamento e que não querem pular pela janela, é exatamente isso que tem acontecido. Os testemunhos são muitos.
É como se o isolamento estivesse criando milhões de candidatos aos prêmios “Tom Hanks”. Aquele Tom Hanks do Náufrago, que aprendeu muita coisa sozinho na ilha. Há várias categorias prêmios. Tom Hanks de Prata pra quem ainda não sabia e aprendeu a conversar com o chat do banco. Tom Hanks de Ouro pra quem já faz pão de levain. E o mais cobiçado, Hanks de Platina, só para quem já fez os dois primeiros e dá aula de trigonometria para os filhos, no home schooling. E para não abandonar as conquistas menores, criou-se um prêmio de consolação pra quem tem conseguido colocar luvas de proteção de látex, já na primeira tentativa, sem misturar os dedos.
E os desafios continuam. Olhei para minha estante. Quem estava lá? Impassivelmente, me esperando há alguns anos, com um olhar de quem te cobra uma decisão? Embora eu saiba que essa cobrança, essa patrulha, nasceu mesmo aqui dentro de mim, é como se ela viesse do imponente dorso dos dois volumes, 1.500 páginas. Puxei o empoeirado Guerra e Paz (Tolstoi). Agora, nesta pandemia, você não me escapa. E comecei a ler.
Sei lá qual é a satisfação de desejo que pode gerar mais prazer: minha madrinha aprender a usar o chat, tio Antônio desenformar um pudim de leite pela primeira vez na vida, ou ler até a página 310 uma com volúpia de continuar até a página 1.526. Qual deles é o prazer mais transbordante? Não sei. Existe alguma métrica para prazer, um tipo KPI, Key Pleasure Indicator?
E há tantas outros!
No prazer desta vida centrípeta, a que nos joga pra dentro, pra dentro de casa, e principalmente pra dentro de nós mesmos, há sempre uma nova descoberta depois outra.
O tempo pretérito do eu não sabia, eu não conhecia, eu não conseguia, foi mudando. Para muitas áreas da vida, as imposições do confinamento foram inspiradoras e pedagógicas. Ao contrário da vida centrífuga que nos arrasta para o mundo lá fora e nos afasta destas fantásticas descobertas internas, sobre habilidades há muito tempo escondidas dentro de nós. Essas que só descobrimos em situações limite. É por isso tenho me lembrado de uma frase de um personagem, Guillaumet, da Terra do Homens (A.S.Exupéry), que dias depois de caminhar perdido pelas neves dos Andes, após a queda de seu avião, e contra a expectativa de todos, salvou-se. E ao reencontrar os amigos, disse uma das frases de que eu nunca mais me esqueci, para explicar como conseguiu sobreviver: “O que eu fiz, palavra que nenhum bicho, só um homem, era capaz de fazer”.
O Covid-19 não é uma queda de avião nos Andes, mas é trágico e inesperado. Alguns de nós, mesmo em outras proporções muito menos aterrorizantes, estamos vivendo a saga do Guillaumet. E aprendendo como chegar não apenas são e salvos do outro lado, mas com alguns recursos novos que estamos desenvolvendo no meio do caminho.
Diante disso, a pergunta que tira meu sono é: o que será que vamos fazer com toda essa habilidade libertadora, com todo esse empoderamento, quando esse vírus for embora?
Os mais cuidadosos não arriscam cravar uma resposta apenas. Li o Celso Ming no Estadão (3/5/2020) dizer o seguinte: “Uma crise como esta é sempre uma boa oportunidade para alterações de rumo, mas não se pode desprezar a força das mazelas que sempre acompanharam a trajetória do animal humano. Mas, ainda assim, alguma coisa vem para ficar ou, então, virá para produzir uma mudança já em curso, que deverá ganhar velocidade. ”
Mesmo com outras palavras, é exatamente assim que estão se formando minhas convicções. As mazelas que sempre acompanharam a nossa trajetória na Terra continuarão a fazer parte de nossa constituição como sujeitos da nossa espécie. O que somos, a perfeição da estátua de Davi não revela. As falhas, rachaduras e distorções em nosso mármore vão nos acompanhar em todas as novas epidemias. Somos assim e ponto. Essa é a nossa natureza, como disse o escorpião para o sapo, enquanto se afogavam. E que bom que somos assim, que bom que temos essas oportunidades para projetar nosso desenvolvimento, para dialogar e enfrentar nossas mazelas, e atenuar as rachaduras.
Enfim, o que virá de novo? O que teremos aprendido que vai permanecer? O que é que fica, afinal?
Acredito que ficarão as conquistas que estão muito mais no campo da organização da vida, do fim de inúmeras inconveniências burocráticas, menos tempo que se esvai bestamente em filas, em vôos inúteis para uma reunião a 1.000 km de casa, fim à obediência a horários desnecessariamente rígidos, em medievais cartões de ponto…
E até uma revelação prosaica da minha prima Marina faz parte dessas pequenas e grandes conquistas. Feliz da vida ela nos disse: ôba, virei prime no Rappi.
E ficará também um monte de novas virtudes até então desconhecidas, ignoradas ou rejeitadas como os pudins da vida, ou os livros cujo dorso assustam, as viagens que não precisam pousar em Miami, a casa onde não apenas se dorme. E conhecer melhor o carteiro que nos atende, que se chama Laércio e tem dois filhos.
Salve o inesquecível Gonzaguinha!