É crível uma única identidade dentro da nossa constante mudança do ser? Ou o passar do tempo nos transforma e/ou nos limita frente aos papéis sociais impostos?
A discussão sobre identidade e “metamorfose” é – com certeza – interessante, sendo muito explorada na Psicologia Social e por cientistas sociais, especialmente por Antonio da Costa Ciampa (1984), no livro “Psicologia social: o homem em movimento” – capítulo “Identidade” (página 58/60):
“Quem é você?
É uma pergunta que frequentemente nos fazem e que às vezes fazemos a nós mesmos. “Quem sou eu?”. Quando esta pergunta surge podemos dizer que estamos pesquisando nossa identidade. Como em qualquer pesquisa, estamos em busca de respostas, de conhecimento. Por se tratar de uma pergunta feita a nosso respeito é fácil darmos uma resposta; ou, não é? (…)
Se, como afirmamos, estamos falando de nossa identidade quando respondemos à pergunta “quem sou eu?”, a primeira observação a ser feita é que nossa identidade se mostra como a descrição de uma personagem.”
Assim, se somos personagens, qual é a história que queremos transmitir? Ficaremos com uma única identidade ou seremos fluidos? Abraçaremos o que foi convencionado socialmente ou quebraremos barreiras?
Cada um com a sua escolha, mas é fato que temos muito o que aprender com as Drag Queens nesse quesito!
Ser Drag é associar ao trabalho artístico a superação do “normal estereotipado”, por meio da elaboração de uma personagem – podendo ser caricata, com itens/características associados ao gênero feminino e com artes performáticas como dança, música, dublagem e encenação de pequenas peças (“Ser e estar Drag Queen: um estudo sobre a configuração da identidade Queer” (2004), Maria Teresa Vargas Chidiac e Leandro Castro Oltramari).
A pesquisa de Maria Chidiac e Leandro Oltramari confirma o que os entrevistados a seguir afirmam: existe um limite que separa a identidade do “sujeito” e a identidade “drag”; todavia, elas podem ser conectadas eventualmente. Também, explicam que as diferenciações começam no momento de criação da personagem, pelo modo de andar, gestos, posturas, voz e linguagem.
A personagem é diferente de sua orientação sexual. É diferente de ser travesti ou transexual. Além de, abarcar qualquer um – tanto homem quanto mulher podem ser Drag Queen. Ser ou estar drag é convergir com a mensagem:
“Como corpo político de intervenção, criação e mutação, que remete às discussões de identidade de gênero, identidade performática e quebra de paradigmas marginalizados. Fenômeno afirmativo de resistência, divergindo dos padrões binários de gênero (masculino e feminino), ou seja, apresenta-se como corpo fluido que transversa as dicotomias vigentes” (“Corpo Político na Identidade Performática da Drag Queen” (2019), Silvia Regina Moreira Vale e outros).
Essa pauta política adveio da necessidade, devido ao preconceito, à imposição de gênero, à rejeição e à falta de informação pela sociedade. A própria origem do termo Drag Queen é nebulosa, contudo, os primeiros registros remetem a meados do século XIX e tinham uma conotação pejorativa para tratar os homossexuais!
A prática do “crossdressing” havia se popularizado em Londres e por não ser crime, os praticantes eram apreendidos com a justificativa de outros crimes, por exemplo, prostituição. Nos Estados Unidos, em torno de 1880, William Dorsey Swann foi o primeiro a se intitular drag na história, mais precisamente “Queen of Drag”. Escravo alforriado, William foi preso inúmeras vezes por falsas acusações e, por isso, tornou-se ativista e lutou pelos direitos LGBTQIA+.
Atualmente, esperava-se que, com a evolução histórica, as Drag Queens pudessem ter a liberdade completa. Infelizmente, não é bem assim. Entrevistei a Drag, Mauricio Lion, sobre como e por qual razão ele começou a se montar e como ele se sente quando está performando e, principalmente, se já sofreu preconceito nas apresentações:
“As pessoas, na verdade, não sabem o que eu sou – alguns me consideram Drag Queen, outros me consideram apenas gay afeminado, andrógino, fluido ou diversos nomes que cabem na classe LGBTQIA+. Ser Drag Queen é a parte artística, homens e mulheres héteros, homossexuais, qualquer pessoa pode ser drag e viver dessa arte.
Eu não faço aquelas maquiagens espalhafatosas ou tão artísticas, pois comecei a me montar com 17 anos para trabalhar com moda. Em Santos, a cidade em que eu moro, eu fazia alguns trabalhos como modelo masculino, mas não tinha o padrão e a estrutura para isso. Assim, para fazer acontecer, eu me montei e virei uma modelo feminina (vamos dizer assim). Comecei a colocar saltos e looks femininos para que pudesse fazer parte dos castings – e desde aquele momento, trabalhei dessa forma.
Agora, trabalho com moda, mas em outra área e quando me monto é uma fase de libertação, é o momento em que eu mostro o meu interno. Engraçado que as mulheres héteros falam que estão presas à maquiagem e ao salto alto por causa da sociedade, mas para nós – drags e todo público que tem nomes derivados/que se vestem – é o momento de liberdade para aferir “eu sou assim” também.
Durante o processo, já sofri preconceito. Por exemplo, já fui vaiado por uma galera conservadora enquanto estava desfilando para uma marca de moda conceitual. Mesmo na rua, é muito visível como as pessoas olham, comentam entre si e xingam.
No passado, já tive nomes drags, como Divina e Melissa. Atualmente, uso meu nome, porque percebi que ser Drag não é uma fuga, é um encontro”.
Por essa razão e para diferentes Mauricios (do presente e de futuras gerações), não podemos deixar de debater sobre inspiração – a respeito do encontro de identidades e narrativas pessoais, dificuldades e conquistas. E é, nesse viés, que o reality show “RuPaul’s Drag Race” ganhou tamanha visibilidade – um programa que visa alavancar a carreira das participantes através do carisma, da unicidade, da coragem e do talento. E o mais incrível, comandado por uma das Drag Queens mais famosas do mundo: RuPaul.
A produção já revelou artistas drags como Bianca Del Rio, Alaska, Miss Vanjie, Trixie Mattel, Katya, Shangela, Gigi Goode, Raven, Peppermint e Latrice Royale. Mas, mais do que personagens, RuPaul’s Drag Race nos revelou seres humanos que lutam para viver uma vida digna, livre e sem medo.
Seres humanos que, além de se maquiarem, cantarem e dançarem, são comediantes, dubladores, estilistas e por aí vai. Pessoas que também criam uma performance para poderem sobreviver financeiramente e emocionalmente em um mundo ainda cheio de preconceitos – afinal, “ser drag faz com que seja mais fácil lidar com as coisas” (frase dita por Trixie Mattel no filme “Trixie Mattel: Moving Parts” – vale a pena assistir!).
Ou seja, ao ser drag, exibe-se uma autoconfiança identitária que, muitas vezes, o outro não possui. E isso traz liberdade.
Além disso, ao longo das temporadas do programa, podemos observar as histórias emocionantes sobre a não aceitação por parte da família, o bullying, os abusos sexuais e as infâncias/adolescências difíceis, e o quanto todo esse contexto impactou, não só na transformação daquela personagem criada como também no conceito de “família” para aquelas pessoas (não à toa, RuPaul é chamada de “Mama Ru”).
As “famílias” de Drag Queens foram criadas justamente para acolher aqueles que foram rejeitados e para ajudá-los a lapidar melhor suas personagens. Deste modo, o RuPaul’s Drag Race é mais do que entretenimento e competição: é uma jornada de autoconhecimento, de (re)construção da autoestima e da autoconfiança (como espectadoras, acreditamos que não só para quem participa, mas para quem assiste também).
O outro lado, é que poderíamos ter mais inspiração no programa, com maior número de participantes transexuais, andróginos, mulheres, etc., competindo na Drag Race de RuPaul. Igualmente, são vistas personagens “mulheres” (estigmatizadas pela sociedade do que deve ser “mulher”), enquanto, conjuntamente, existem os personagens “homens” no mundo real (chamados “Drag Kings”, como Louis de Ville).
Por último, é interessante notar que, mesmo com toda a visibilidade e a inspiração que RuPaul’s Drag Race trouxe para esse tema, as pessoas ainda não enxergam o valor artístico desse universo (como enxergam, por exemplo, na Lady Gaga). Em 2016, RuPaul deu uma entrevista, na qual afirma: “Nunca me senti uma personagem mainstream. Na verdade, saiba que eu nunca seria convidada para estar no programa da Ellen, do David Letterman ou no Tonight Show (…) As pessoas sabem meu nome, elas sabem como eu me pareço, mas eu sou convidado para a festa? Não.”.
Portanto, será somente por intermédio do respeito que os – verdadeiramente – “convidaremos para a festa”. Essa é a nossa resposta social ao universo Drag: respeito ao seu valor. E se você quiser desfrutá-lo, vá a eventos, prestigie espetáculos/performances e divulgue inspirações.
Nós (Ju e Gabi) saímos para algumas festas e tivemos contato com Drags icônicas como Adore Delano, Detox, Sharon Needles, Lorelay Fox e Ikaro Kadoshi, e podemos afirmar – com toda a certeza do mundo – que drags configuram pura admiração.
São a materialização – mesmo que inconsciente – da famosa frase de Mama Ru (“se você não se ama, como “diabos” irá amar outra pessoa?”). Ensinam o que é força, as diferentes facetas do ser, a libertação de gênero impositivo, a superação dos próprios medos/traumas, a criatividade, a (auto)aceitação e, principalmente, o que é liberdade de expressão.
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