Começamos a assistir a série “Little Fires Everywhere” (Hulu) e já no primeiro episódio, ouvimos: “Sabe que não somos como os Richardson, certo? A polícia não está do nosso lado. Não nos safamos como eles”, fala da personagem Mia Warren (Kerry Washington) conversando com sua filha.
Os Richardson – Brancos. As Warren – Negras.
Durante esse período de “sessão pipoca” em nossa casa, iniciavam os protestos nos Estados Unidos por causa da morte de George Floyd, em Minneapolis, vítima da atuação policial.
No Brasil, dois meninos também estampavam os noticiários:
Adriel Oliveira, 12 anos, soteropolitano, vítima de racismo através das redes sociais. Adriel compartilha a sua paixão por livros e leitura em posts na internet, lamentavelmente, acabou recebendo um comentário racista que dizia: “deveria estar trabalhando em uma mina de carvão por ser negro e não lendo livros”.
Felizmente, Adriel resistiu ao episódio compartilhando o comentário e, em poucos dias, alcançou mais de 800 mil seguidores – com o apoio de influenciadores e de instituições, ganhando livros e suporte financeiro para continuar os estudos.
Infelizmente, o outro garoto da notícia, Miguel Otávio, 5 anos, não teve a mesma sorte e o racismo interrompeu seus sonhos.
Mirtes Renata, mãe de Miguel e empregada doméstica em uma área nobre de Recife, deixou seu filho, que a acompanhava no serviço, sob a supervisão da patroa, enquanto passeava com os cachorros da casa. Sarí Corte Real (patroa e primeira-dama de Tamandaré) colocou o menino no elevador e deixou que ele, sozinho, fosse encontrar a mãe. Miguel acabou saindo do elevador no 9º andar e, não se sabe como, caiu de uma altura de 35 metros e veio a óbito. Sarí foi presa em flagrante por homicídio culposo e solta após pagar uma fiança de R$ 20 mil.
Diante desses acontecimentos, só conseguíamos pensar: “como isso pôde acontecer?”. Todos se encontravam em total choque pelas tragédias.
A verdade é que, apenas com essa pergunta, demonstramos o nosso privilégio branco.
Inúmeras são as razões (conhecidas) que suscitam resultados semelhantes a esses, e que, em sua maioria, permeiam o racismo estrutural – fenômeno, que mesmo secular, é pouco debatido e divulgado frente a proporção do problema. E o pior é que sabemos: a cada 23 minutos, um negro morre no Brasil (ONU e Mapa da Violência, 2017). Sete em cada dez pessoas assassinadas são negras (Atlas da Violência, 2017).
Esse é o verdadeiro privilégio: nunca termos escutado a frase de Mia ou vivenciado situações como as de George, Adriel, Miguel ou Mirtes.
E quantos – mais – episódios diários de racismo ocorrem e não são publicitados? Quão racistas são as instituições e o (in)consciente da sociedade? Como ocorrem as oportunidades – ou falta de – seja nos estudos, no trabalho, na renda e nos direitos sociais para a população negra?
Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019 revelam esse racismo estrutural que interrompe sonhos e cuja indignação não é capaz de mudar as realidades, porque pouco se olha para os privilégios brancos. 11 a cada 100 mortes violentas foram provocadas pela Polícia. São 17 pessoas mortas por dia, 6.220 vítimas em 2018, por intervenção policial. Entre as vítimas, 99,3% são HOMENS; 77,9% entre 15 e 29 anos JOVENS; e 75,4% NEGROS. Homens, jovens, negros e periféricos são os que mais morrem. E essa realidade não é diferente para as mulheres. A maioria das vítimas de feminicídio tem de 20 a 39 anos, 61% são negras e 70,7% tinham no máximo ensino fundamental. Mulheres, jovens, negras e de baixa escolaridade e renda são as que mais morrem vítimas de feminicídio.
Privilégios até em formatos de valor e de valia de uma vida. A Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e o Senado Federal divulgaram, em 2017, que 56% da população brasileira concorda com a afirmação de que “a morte violenta de um jovem negro choca menos a sociedade do que a morte de um jovem branco”.
Novamente, parece fácil dizer “como pode”?
“Little Fires Everywhere” segue nos informando sobre os “pequenos detalhes” do racismo estrutural: a mulher negra teve seus direitos revogados e tudo mudou quando uma mulher branca pugnou por ela. A mulher negra, para ser ouvida, precisou demonstrar um conhecimento muito superior em relação aos demais. A ocorrência de apropriação de histórias negras para conseguir alcançar outros objetivos. A necessidade de contrapor pessoas brancas, que não conseguem visualizar que a falta de dificuldades na vida é um privilégio de poucos. O sofrimento com bullying e claras diferenças de tratamento em lugares que se dizem inclusivos
O ensinamento é também sobre o racismo velado ou da falsa tentativa de ser “sem preconceitos”, todavia sem compreender as questões inerentes.
Com certeza, do lugar que partimos, de mulheres brancas acadêmicas, entendemos que nunca saberemos o que é ser negro, mas que é possível desconstruir e compreender sobre o privilégio branco. Além da importância da reflexão sobre hierarquias, desigualdades, pobreza, racismo e sexismo.
Debater o lugar da fala é também compreender que os espaços e oportunidades não são acessados por todos, porque partimos de lugares e posições diferentes, e que epistemologias e produções desses grupos são silenciadas e oprimidas. Pensarmos em lugar de fala envolve refutar historiografias tradicionais e a hierarquização de saberes, consequente da hierarquização social.
A discussão que se apresenta é estrutural e é preciso enxergar as opressões, como os impactos na constituição dos lugares de grupos subalternizados, conforme o livro “Pequeno Manual Antirracista”, da Djamila Ribeiro, página 15/16:
“Pessoas brancas não costumam pensar sobre o que significa pertencer a esse grupo, pois o debate racial é sempre focado na negritude. A ausência ou a baixa incidência de pessoas negras em espaços de poder não costuma causar incômodo ou surpresa em pessoas brancas. Para desnaturalizar isso, todos devem questionar a ausência de pessoas negras em posições de gerência, autores negros em antologias, pensadores negros na bibliografia de cursos universitários, protagonistas negros no audiovisual. E, para além disso, é preciso pensar em ações que mudem essa realidade (…).
Perceber-se é algo transformador. É o que permite situar nossos privilégios e nossas responsabilidades diante de injustiças contra grupos sociais vulneráveis (…). Trata-se de refutar a ideia de um sujeito universal — a branquitude também é um traço identitário, porém marcado por privilégios construídos a partir da opressão de outros grupos. Devemos lembrar que este não é um debate individual, mas estrutural: a posição social do privilégio vem marcada pela violência, mesmo que determinado sujeito não seja deliberadamente violento”.
A partir da leitura do livro, perguntamos para a nossa amiga Bárbara Vieira Lima, ativista dos movimentos negros, sobre o privilégio da branquitude e o nosso papel na luta antirracista:
“O privilégio branco é ter benefícios sociais, econômicos, profissionais, entre outros, só pelo tom da sua pele. É quando você não consegue imaginar o que é entrar no elevador e alguém sair por causa da cor da sua pele, é perder o emprego e sua beleza ser diminuída por isso.
Eu, particularmente, não gosto de falar sobre antirracismo com branco, porque antes de ser antirracista é preciso não ser racista. É importante identificar quais são as suas atitudes racistas, pois ser racista não significa ser “racista explícito” – há várias atitudes que são e você nem sabe. Então, primeiro, é importante estudar, procurar referências pretas, ler sobre a história preta, para assim, identificar seus comportamentos e começar o processo de desconstrução.
Por fim, o único local de fala que o branco tem na luta antirracista é apoiar o movimento (físico, psicológico, moral), e isso inclui participar de protestos, denunciar crimes, influenciar o meio branco que vive (uma vez que branco ouve branco) e só. O branco não está em papel de ensinar nenhum preto, independente de quem seja, consciente ou não. Ainda, seguir aprendendo e se educando para diminuir comportamentos racistas na sociedade.
O comportamento do branco que mais me irrita na luta antirracista é essa falta de conhecimento, falando de coisas como se conhecesse. Desde que teve essa popularização da luta antirracista há duas semanas, existem pessoas que estão postando por causa da “tendência”, mas que nunca estudaram o mínimo e que nem sabem se são racistas ou não”.
Que lição.
Nomes como Esperança Garcia, Anastácia, Zacimba Gaba, Tereza de Benguela, Maria Aranha, Aqualtune, Dandara dos Palmares, Zumbi dos Palmares, Mariana Crioula, Francisco José do Nascimento, Estêvão Silva, José do Patrocínio, Nilo Peçanha, etc., devem fazer parte da história brasileira. Devemos prestigiar a literatura com Maria Firmina dos Reis, Machado de Assis, Carolina Maria de Jesus, James Baldwin, Elizandra Souza, Colson Whitehead, Jarrid Arraes, Marlon James, Alzira Rufino, Joel Rufino dos Santos, Geni Guimarães, João da Cruz e Souza e tantos outros.
A lista de nomes é interminável e – muito – ainda apagada. Por isso, vamos reconhecer o nosso privilégio de cada dia, usar a literatura, pesquisa e toda produção negra intelectual e também ativista para refletir sobre pensamentos, comportamentos e ideias racistas que possamos ter; que isso nos sirva para melhorar enquanto seres humanos e sociedade.
E antes de falar, escutar mais, aprender mais e se desconstruir constantemente. Esse parece ser o caminho.
* Este artigo foi escrito com a colaboração de Tamires Fakih, Gestora de Políticas Públicas e Doutoranda em Mudança Social e Participação Política (USP).
** É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita. O Jornal 140 não se responsabiliza pela opinião dos autores deste coletivo.