Vi o filme, pela primeira vez, em 1973. De lá pra cá, mais umas 6 vezes. Nunca, porém, aproveitei e sofri tanto como nesta última vez, há uma semana. Eu fiquei mais velho e o filme muito mais jovem.
Vejam vocês também, mesmo já tendo assistido e me digam se Bob Fosse, o diretor do filme, não estava pensando no Brasil quando o filme foi rodado.
O filme é a história que se passa em Berlim, contada a partir do ângulo de um cabaré, onde pouco a pouco, os frequentadores tradicionais vão sendo substituídos pelos de camisa parda, que infestaram a Alemanha na ascensão do nazismo.
A lição do filme é que nenhuma mudança no comportamento político e social de um país é algo que ocorre da noite para o dia. Há movimentos internos que vão se desenvolvendo aos poucos, mesmo que nem todos sintam o que está por vir. Com o perdão da comparação, é como uma atividade peristáltica, que a gente bem sabe onde termina. Ou, sendo mais educado, uma agitação tectônica que, em algum momento, nos chacoalha.
Ou mesmo algo como a calúnia, dramaticamente descrita numa ária do “Barbeiro de Sevilha”. Algo que começa como um pequeno ventinho, um zumbido e vai crescendo, crescendo e quando a vítima da calúnia se dá conta, lá se foi sua reputação.
O “Cabaret” tem esse mesmo ritmo. Pouco a pouco a mentalidade de uma fração grande da sociedade alemã vai se convencendo de que o caminho autoritário recuperaria sua dignidade e sua economia, perdidas depois a Primeira Guerra e dos sacrifícios que o Tratado de Versalhes impôs.
Em algum momento do filme, numa cervejaria onde muita gente, de diferentes idades, bebiam e conversavam, ergue-se um jovem muito loiro, de camisa parda, suástica na manga e canta, inicialmente sozinho. Um dos trechos diz:
“The Rhine gives its gold to the sea.
But somewhere a glory awaits unseen.
Tomorrow belongs to me.”
O contágio cresce entre os clientes. É vibrante. Quase ninguém se recusa a cantar, como se fosse uma ode aos tempos que viriam. Um sonho de libertação e de recuperação da dignidade nacional perdida. E ouve-se o uníssono Tomorrow belongs to me se repetir muitas vezes. Acho que é o segmento do filme que ilustra e marca bem a cristalização da nova mentalidade hegemônica no país.
Tenho a sensação de que algumas vezes ouço esse Tomorrow belongs to me sendo entoado por pessoas que eu não poderia supor que se encantariam com esses versos aqui no Brasil.
Os indicadores sociais que acompanho dizem que em torno de 70% dos brasileiros não cantam essa música. Porém, a história tem nos ensinado que 30%, dependendo de quem sejam eles, é mais do que suficiente como agente de transformação, ainda que ela não se sustente a médio prazo.
Nas primeiras sequências do “Cabaret”, o apresentador vivido por Joel Gray (Oscar de coadjuvante) convida os clientes a permanecerem e aproveitarem a vida lá dentro do cabaré.
“Leave you troubles outside!
So – life is disappointing? Forget it!
We have no troubles here! Here life is beautiful
The girls are beautiful
Even the orchestra is beautiful!”
Esses versos eram já um prenúncio de que lá fora as coisas não seriam as mais agradáveis e promissoras. Melhor se refugiar dentro do cabaré e longe da irracionalidade que crescia fora. E, de fato, foram ficando cada vez pior.
A doce ilusão de que o cabaré poderia ser um “refúgio” foi se desfazendo e o desenrolar do filme mostrou o que todos nós estamos cansados de saber.
Não posso crer que este filme seja a inspiração para os próximos tempos de nossa história no Brasil. Por isso, este é o momento de rever “Cabaret”.
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