Os últimos tempos não tem sido triviais para os terráqueos. Os habitués humanos desse planeta tem colecionado uma série de perplexidades em cadeia, sobretudo desde meados da década de 1990, pós-queda do muro e da bipolarização, com o aprofundamento global do advento da internet que veio consolidar a amplitude espalhada do “mundo líquido” e volátil de Zygmunt Bauman, sobretudo a partir das redes sociais (as digitais), confinando o sistema em novas bolhas ressonantes.
Com essa network, amplificada e preenchida pelo broadcast, “peer to peer” (rede de transmissão atomizada) de todo o tipo de informação, a percepção dos intensos movimentos biológicos, tecnológicos, econômicos, políticos, éticos e sociais que temos causado e suas consequências para nossas vidas e às das demais espécies que viajam ao léu conosco no planeta Terra, saltam aos olhos…e à consciência. Seja pelas barbaridades causadas por uma concentração de renda fora de propósito, pelo desequilíbrio natural compulsivo e injustificável ou uma catastrófica epidemia global que poderia ser evitável ou ter impactos mais brandos e justos, diante do desenvolvimento científico e econômico recentes. Por isso o “novo normal” pós-pandemia pode não ser uma balela retórica, mas a “desculpa perfeita”, o “tempo ótimo” que nosso inconsciente coletivo procurava para executar um tão esperado “reset” social, relativamente pacífico.
A relação social mais influente nos sistemas humanos, segundo Adam Smith (o pai da economia) em “A Riqueza das Nações” se daria por meio de um mecanismo ao qual a humanidade foi chegando graças ao comércio, gerando a divisão do trabalho e o mercado, chamado economia e que, envolvendo a todos em um vórtex, ajudou a regular a convivência e as relações, formando um sentido compartilhado por todos e baseado em necessidades reais, pré-requisito que determinaria a sociedade, segundo Max Weber (pai da sociologia e da burocracia, quando ela era funcional).
Etimologicamente, economia (oikos + nomos) significa “costumes, leis” da “casa” e tem sua origem no pensamento sociológico, quase doméstico, não é uma ciência exata criada para retirar valor de coisas ou subjulgar os outros, como muitos gostam de pensar, ou seja, tem muito mais a ver com a sociabilidade intrínseca do homem do que com seu egoísmo latente na exclusão do outro pela acumulação de valor. É nessa vibe que surgem (ou ganham força) os movimentos mais interessantes para reformular nosso contrato social e os valores do nosso sistema econômico.
O Capitalismo Consciente Brasil, por exemplo, filial nacional do Conscious Capitalism, criado pelo fundador da rede Whole Foods Market de supermercados que vendem produtos exclusivamente orgânicos (e hoje fazem parte da Amazon Inc.), John Mackey e o acadêmico Raj Sisodia, nos USA, advoga um capitalismo saudável com foco no propósito da empresa (e não diretamente no lucro financeiro que é apenas um pré-requisito de sustentabilidade do negócio) e nos “stakeholders” (todos os que se relacionam ou são impactados pela organização e seu mercado) e não apenas nos “shareholders” (donos, acionistas), além da cultura e liderança conscientes para as quais os dividendos não são apenas financeiros, mas também socioambientais e de (busca por) “sentido”.
Outro exemplo interessante é o Sistema B que é uma instituição que, além de inspirar, como o Capitalismo Consciente, faz um ranking pró-ativo de “empresas B”, ou seja, aquelas em que o propósito é mais amplo do que apenas gerar lucro, mas também de fazer o bem (“benefit companies”) para a sociedade e para o planeta. As empresas candidatas se submetem a um rigoroso escrutínio, segundo vários critérios técnicos, para terem seu nome aprovado – ou não – como empresa que olha além de seu próprio umbigo, tecnicamente. A maior Empresa B do mundo é brasileira, a Natura. Até grandes players do status quo capitalista no hemisfério norte, como o World Economic Forum, que congrega as maiores empresas e lideranças mundiais, estão aderindo ao inevitável redirecionamento das realizações humanas para um mundo mais limpo e justo, como se pode entender na minha matéria para o Jornal 140 “The Great Reset”.
Mas talvez o que esteja acontecendo no mundo prático de mais alvissareiro, seja o resgate, moderno e tecnológico, dos padrões de interdependência saudáveis entre as relações sociais e o sistema econômico, como primeiro pensou Adam Smith e que reveem o contrato social da nossa combalida sociedade, como enxergou Weber há mais de 100 anos. A Fundação Ellen Macarthur, constituída em 2010 pela aventureira de mesmo nome que foi a recordista feminina em velocidade de circunavegação marítima global, tem como objetivo promover o conceito da Economia Circular como referência para o moderno capitalismo e enxerga a produção industrial como um processo circular onde não existe diferença entre dejetos e matéria-prima (em um sistema de retro-alimentação pleno) e, portanto, não há descarte, lixo sem uso prático.
Existe tecnologia e necessidade para essa nova maneira de produzir e, agora, talvez suficiente vontade política, graças ao estado lamentável de coisas do nosso mundo “intra-pandemia” que salta aos olhos nessa reflexão global forçada, sem vista grossa à avalanche de crises estruturais que vem se represando a tempos na “economia líquida” pré-corona.
Também bastante redonda é a visão da economista britânica da Universidade de Oxford, Kate Raworth. Ela formulou uma reestruturação do regime capitalista, referenciado por um “DONUT”. A “donut economics” também enxerga uma economia mais parecida com os ecossistemas da natureza (onde “nada se cria, nada se perde e tudo se transforma”, como dizia Antoine Lavoisier), numa disposição circular, mais ou menos análoga à camada de vida da crosta terrestre que possui uma banda orgânica entre o solo e a atmosfera, acima da qual não há vida e abaixo também não. Como a parte substancial de um donut (rosquinha doce anglo-saxã de sabor duvidoso), a banda de vida na Terra, está entre esses dois círculos circunscritos. No sistema criado por Raworth, em seu livro “Donought Economics”, existe um “espaço ótimo” da economia e da sociedade entre uma faixa de limite externa, além da qual a exploração irracional destrói o equilíbrio da base, leia-se o equilíbrio ecológico, nosso substrato matriz e uma faixa de limite interna que delimita o piso da sobrevivência social decente e saudável. Todo empreendimento humano deveria ficar entre estes círculos, ou seja, no “corpo” da rosquinha, sem ultrapassá-la!
Nos anos 1980 praticamente nada aconteceu no Brasil, durante a chamada “década perdida”, depois disso, desde os anos 1990, a geração “X” tem vivido transformações quase que cronicamente, desde o fim da ditadura aqui e a queda do muro de Berlim, globalmente, com a internet e o desenvolvimento científico e tecnológico tsunâmico que se seguiu. Agora no ocaso do capitalismo tradicional que saturou, literalmente, a tudo e a todos, surge a chance de um reset onde não haverá retração, mas uma nova onda de oportunidades, como foi o Plano Marshall que reconstruiu a Europa pós-guerra, só que muito mais amplo, inovador e aberto. Nada será perfeito, apenas renovado, com chance de ser mais criativo e compatível com o tempo atual. Estamos numa era em que temos conhecimento e técnica para aprender a face mais complexa da natureza e adaptá-la para o mundo humano em harmonia com os sistemas naturais (conceito da “biomimética”) e, tudo indica, esse presente que pode estar vindo em um futuro próximo, é redondo com um buraco no meio.
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