A literatura, forma de arte que possui grande potencial responsivo ao seu tempo, é uma importante ferramenta para entender as formações subjetivas de cada época.
As obras literárias apresentam personagens atravessados pelos discursos às suas maneiras. Assim, possibilitam conhecimentos sobre o que é o ser humano também em sua individualidade.
O Brasil possui imensa riqueza em suas produções literárias. Elas contêm construções de pessoas de todos os gêneros, sexualidades, etnias e posições sociais.
Para iniciar uma imersão em suas representações, seguem 10 personagens emblemáticos, entre eles, cânones e contemporâneos.
Capitu, de Dom Casmurro
A personagem de Machado de Assis é enorme, como a obra em que vive.
Dona dos “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, é objeto de fixação e paixão do protagonista Bentinho, quanto a quem é “mais mulher do que ele era homem”.
O clímax do livro acontece após o casamento deles, que é permeado pelas dúvidas do protagonista a respeito da fidelidade da amada, que culminam no desenvolvimento de sua persona casmurra.
Já são dois séculos em que Capitu é enaltecida, sem haver respostas certas a respeito da sua verdade na relação, cuja narrativa foi construída dispensando conclusões. O mais importante, então, é como a personagem transcende a historicidade da obra e ilustra discussões a respeito de ciúmes abusivos e masculinidades hegemônicas.
Macabéa, de A Hora da Estrela
Em sua última obra gigante, Clarice Lispector deu vida à uma anti-heroína.
A personagem é uma mulher alagoana pobre, que vive no Rio de Janeiro sem propriamente reconhecer sua infelicidade. Como se não bastasse a insignificância que protagoniza, no romance tem que dividir espaço com seu narrador, uma figura masculina e egocêntrica.
Conhecê-la é deparar-se com problemas comuns no cotidiano da classe baixa brasileira. Sua história é, enfim e prematuramente, concluída com uma ilustração da incontrolabilidade e finitude da vida.
Após a leitura, vale conferir sua representação cinematográfica interpretada por Marcélia Cartaxo, em longa homônimo ao livro.
Macunaíma, de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter
É o personagem mais famoso de Mário de Andrade, que escreveu a obra, fruto de longas pesquisas, em que vive em poucos dias
O protagonista é um personagem tão complexo quanto imprevisível. Nascido “no fundo do mato-vigem”, o “preto retinto” desde cedo apresentou uma de suas principais características: a preguiça. Ao longo da narrativa, demonstrou ter poderes mágicos, sexualidade exuberante e senso de moralidade questionável.
Um dos pontos mais interessantes de acompanhar sua jornada é contatar elementos da identidade do Brasil. É possível, então, considerar que o herói personifica particularidades culturais do povo brasileiro.
Baleia, de Vidas Secas
A cachorra é considerada a personagem mais querida de Graciliano Ramos.
O romance regionalista em que vive trata da história de uma família de retirantes sertanejos. Nele, enquanto há zoomorfização (animalização do ser humano), a personagem é antropomorfizada, ou seja, revestida de humanidade. Assim, em uma narrativa sentimental, é com ela que o leitor contata os maiores sentimentos da obra.
Convém, então, constar que seu nono capítulo contém sua mais emblemática cena, que é um dos marcantes acontecimentos da literatura brasileira.
Pedro Bala, de Capitães da Areia
Jorge Amado fez do personagem o líder de um grupo de menores abandonados que vagavam por Salvador.
Ele possui 15 anos, tendo 10 de experiência como morador de rua. Seu apelido faz referência à sua velocidade na corrida, uma das características que seus colegas admiram. Outro fator de sua composição é saber que seu pai, um líder operário, fora assassinado durante uma greve. A violência é de forte presença em sua história – inclusive a institucional, retratada em cenas de tortura em um orfanato.
O livro, de claro teor social, é uma obra de protesto e denúncia. Ademais, especialmente com o protagonista, tem potencial para desconstruir concepções maniqueístas do bem e do mal.
João Grilo, de Auto da Compadecida
É protagonista do texto teatral com elementos da literatura de cordel e cunho satírico de Ariano Suassuna, que apresenta diversos personagens alegóricos.
A história se passa em um interior nordestino. Nesse contexto, eis um personagem pobre, franzino, astuto e amigo, que costuma causar confusões ao tentar se beneficiar de situações adversas. Sua última peripécia causou uma chacina em que morre, e junto com as vítimas vai ao céu para o julgamento final.
Após a leitura, vale conferir sua representação cinematográfica interpretada por Matheus Nachtergaele, em longa intitulado O Auto da Compadecida.
Protagonista sem nome, de O Cheiro do Ralo
Em seu romance mais famoso, o ficcionista, desenhista, quadrinista, dramaturgo e ator Lourenço Mutarelli deu vida a um personagem um tanto desagradável.
Este não tem seu nome revelado, fato que instiga a imaginação do leitor. A história orbita sua rotina no trabalho, que consiste em vender objetos usados em uma loja insalubre, cujo mau cheiro é por ele justificado com o repetido bordão “vem do ralo”. Nos intervalos de sua atividade de reduzir objetos carregados de histórias a dinheiro, frequenta uma lanchonete, onde vê-se fixado nas nádegas de uma garçonete.
É interessante pensar no protagonista sob a óptica da psicanálise: trata-se de um homem perverso, com um projeto existencial circular, que reconhece a falta, mas a recusa. Além de ser afetivamente pobre, permeia suas relações com os clientes por quem não sente empatia com um gozo doído. No mais, a atração pelo corpo da moça é fetichista, ou seja, uma situação em que uma parte subjugou o todo.
Após a leitura, vale conferir sua representação cinematográfica interpretada por Selton Mello, em longa homônimo ao livro.
Constantino, de Cloro
O personagem vive no segundo romance do escritor e diplomata Alexandre Vidal Porto, uma das poucas pessoas públicas da política a se declarar LGBT e conversar publicamente sobre o tema.
Assim como Brás Cubas, criado por Machado de Assim, seu protagonista trata-se de um defunto autor. Morto aos 51 anos, fora um advogado, residente de São Paulo, crescido em ambientes preconceituosos. Sua vida teve um marco que foi a descoberta de seu desejo, que explorou às escondidas.
Assim, acompanhar sua trajetória, com a qual é fácil identificar-se, consiste em uma lição sobre a importância do autoconhecimento e um de seus possíveis desdobramentos: a promoção de uma vida o mais autêntica possível.
Lavínia, de Eu Receberia as Piores Notícias de Seus Lindos Lábios
A obra de Marçal Aquino contém um dos emblemáticos casos de personagem feminina esférica da literatura contemporânea.
Lavínia, apesar de assumir o papel de mulher por quem o protagonista da obra se apaixona, é quem nela possui maior riqueza em sua construção. Ela é bela, sedutora, instável, cindida, pratica atos moralmente questionável e detém um passado conturbado do qual é resgatada, sem se submeter à posição de vítima.
Após a leitura, vale conferir sua representação cinematográfica interpretada por Camila Pitanga, em longa homônimo ao livro.
Eurídice, de A Vida Invisível de Eurídice Gusmão
É a protagonista do primeiro romance da escritora recifense Martha Batalha, que indicado ao prêmio Jabuti.
Sua história ocorre no Rio de Janeiro dos anos 1940 e 1950. Neste cenário, a brilhante mulher resume-se em ser dona de casa, filha, irmã, esposa e mãe, sempre flertando com “o que poderia ter sido”. Seus ensaios de apropriação de desejos são arruinados pelo contexto social ao qual estava inserida, mais especificamente, pelo seu marido.
Acompanhar sua trajetória é conhecer a vida de muitas mulheres, tanto as contemporâneas quanto do passado recente ou não.
Após a leitura, vale conferir sua representação cinematográfica interpretada por Carol Duarte em longa intitulado A Vida Invisível.