“O menino é o pai do homem” é título do capítulo IX de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Nele, o defunto-autor narra alguns de seus primeiros causos, externando que há tempos construía quem veio a ser.
Machado bem ilustra a importância da segunda etapa do desenvolvimento, a infância. Ainda que nem todos que passaram pela fase tenham exercido o direito de vivê-la, foram crianças. Mesmo sem a usual facilidade de lembrar do próprio universo infantil, é fácil associá-lo a elementos objetivos e subjetivos: comportamento lúdico, vocabulário reduzido, pequenez física, relações familiares marcantes, dependência de terceiros, imensa potência imaginativa e diversas possibilidades de descobertas.
A literatura debruça-se nesta circunstância existencial. Ela não é só uma importante ferramenta para entender os contextos nos quais os sujeitos estão inseridos, como também fomentar compreensões sobre individualidades e suas questões.
Assim, seguem 10 livros, de diversos países, protagonizados por crianças e centrados em temas de seus universos.
Peter Pan – J. M. Barrie
O clássico foi publicado em 1911 e desde então coleciona adaptações cinematográficas e teatrais.
Trata-se de uma obra de fantasia: situada na fictícia Terra do Nunca, narra os voos do protagonista Peter Pan com os irmãos Darling e os Meninos Perdidos. Depois de cantar com sereias, festejar com índios e lutar com piratas, os personagens são submetidos à difícil escolha de retornar ao mundo real ou permanecer onde serão eternamente crianças.
O livro é ideal para leitores de todas as idades. Alguns podem se encantar por sua carga imaginativa, outros com a elaboração de questões inexoráveis, como a morte e o passar do tempo. A história que levou à sua escrita, de extrema beleza e dor, deu origem ao premiado filme Em Busca da Terra do Nunca.
Kafka e a Boneca Viajante – Jordi Sierra i Fabra
A obra é baseada em fatos narrados por Dora Dymant, que foi companheira do gigante Franz Kafka.
Sua narra um acontecimento ocorrido um ano antes do escritor falecer. Passeando pelo parque Steglitz, ele encontrou uma menina chorando. Ao abordá-la, descobriu que seu nome era Elsi e o motivo de sua dor era ter perdido Brígida, sua boneca.
Assim, respondeu que, na verdade, Brígida fora viajar; fato que sabia por ser um carteiro de bonecas comprometido a trazer suas correspondências. Então, por três semanas os dois se encontraram para ler e discutir suas cartas.
Logo, houve uma amizade improvável, fomentada em imaginação e arte. Os escritos do autor nunca foram encontrados, de forma que o livro segue sendo, portanto, a melhor representação de um fragmento da história da literatura.
Os Meninos da Rua Paulo – Ferenc Molnár
A novela, que almeja tanto o público juvenil quanto o adulto, foi publicada em 1907 e adaptada para o cinema. Ainda hoje, é a obra literária húngara mais conhecida ao redor do mundo.
Ela narra a luta de meninos pelo “grund” da Rua Paulo, um terreno baldio onde crianças da região brincavam. No decorrer da narrativa, a disputa é compreendida com crescentes seriedades, de forma que os garotos contatam questões como heroísmo, sacrifício e cidadania. O que supostamente era lúdico, entretanto, culminou em uma tragédia.
O livro, então, é uma denúncia das consequências da violência que viviam as crianças no contexto bélico da época, assim como a falta física e simbólica de espaço para elas.
A Desumanização – Valter Hugo Mãe
É o quarto livro do autor, uns dos maiores nomes da literatura lusófona contemporânea.
Sua história, ambientada em uma gélida aldeia islandesa, tem início em um momento de luto: a garota Halldora perdeu sua irmã gêmea. Uma vez submetida a processos de resignação e transformação, ela passa a ser entendida pelos familiares e colegas como uma inconveniente memória da menina falecida.
A obra, especialmente cara por ser narrada de modo semelhante ao discurso de uma criança, é carregada de profundas reflexões sobre a vida e sua fugacidade.
Meu Pequeno País – Gaël Faye
O autor é escritor e rapper. Ele emigrou para França em 1995, escapando da guerra civil do Burundi.
Seu romance estreante e semi-biográfico, vencedor do prêmio Goncourt des Lycéens, aborda o conflito sob a perspectiva de uma criança. É, então, uma comovente compreensão da inocência infantil diante as tristezas da história que interromperam seu desenvolvimento e tiraram a vida de sua irmã.
Depois da leitura, vale conferir sua homônima adaptação cinematográfica, cujo lançamento estava previsto para março deste ano.
O Olho mais Azul – Toni Morrison
A escritora, professora e editora estadunidense foi a primeira mulher negra a ser laureada com um Nobel. Este, considerado um de seus livros mais impactantes, foi seu romance de estreia.
Ele narra a história de Pecola Breedlove, uma garota que era maltratada pelas pessoas com quem convivia devido ao fato de sua pele ser negra retinta e seu cabelo mais crespo que o dos demais. Nesse contexto, desenvolveu um sentimento que se tornou manifesto na forma de desejar ter olhos azuis como o das mulheres brancas que considerava belas.
Assim, tocando em temas como machismo, padrões de beleza e vulnerabilidade social, a obra possui imensa potência antirracista.
Capitães da Areia – Jorge Amado
O romance do militante comunista baiano, de claro teor social, é uma obra de denúncia.
A história trata do cotidiano dos capitães da areia, grupo de meninos de rua que dormem em um trapiche abandonado e perambulam por Salvador. A narrativa incidirá sob cada um dos personagens, costurando seus passados difíceis com presentes que contêm contravenções, lutas, amizade e diversas violências.
Assim, vê-se que o retrato de infâncias desprivilegiadas, além de ser um protesto, possui potencial desconstrutivo de concepções maniqueístas de bem e mal.
Meu Pé de Laranja Lima – José Mauro de Vasconcelos
O clássico livro do escritor carioca, publicado em 1968, foi traduzido para 52 línguas e adaptado para cinema, televisão e teatro.
Sua história gira em torno de Zezé, esperto garoto de cinco anos residente do Bangu, bairro periférico do Rio de Janeiro. Quando seu pai perde o emprego, é forçado a se mudar para uma casa onde tem como única companhia uma árvore de estimação. Nesse contexto, conhece o senhor Portuga, por quem nutre afetos até então desconhecidos.
A narrativa, enfim, é um retrato de uma infância desfavorecida, que cedo contata problemas da vida adulta e alguns lutos.
A Terra dos Meninos Pelados – Graciliano Ramos
O escritor alagoano escreveu o esse conto logo após sair da prisão, com intuito de contemplar o público infantil.
Nele, é narrada a história de Raimundo, um garoto que possui calvície e heterocromia ocular. Por tais motivos, era excluído das outras crianças, que o apelidaram de “pelado”.
Devido à solidão, o menino transportava-se para um lugar imaginário denominado Tatipirun, onde é semelhante aos demais.
O livro, logo, além de ser excelente para um primeiro contato com os escritores clássicos nacionais, é uma lição sobre alteridade à mágica óptica de uma criança.
O Ponto Cego – Lya Luft
A escritora gaúcha é um forte nome na literatura brasileira, tendo publicado 30 livros e realizado inúmeras traduções, inclusive, de obras da Virginia Woolf.
A narrativa retrata a história de uma família nuclear a partir do ponto de vista de uma criança, cuja identificação resume-se a Menino. Carregada de dor, luto e não-ditos, a história desenvolve-se apesar de um empecilho: a inevitabilidade do tempo sob um garoto que deseja deixar de crescer.
Como adendo, fica o comentário de que a publicação é especialmente interessante aos entusiastas da psicanálise.