Lançado na Netflix em setembro de 2020, o documentário O Dilema das Redes, que se apoia em um drama ficcional, apresenta informações já conhecidas por grande parte do público da mesma forma que escancara novidades surpreendentes e perturbadoras sobre o mercado da tecnologia e a sociedade que acha que o “consome”.
Vinculando dramatizações esteticamente muito bem produzidas com entrevistas reais de personagens com alta importância e participação nas grandes corporações de tecnologia, as chamadas big techs, o documentário não tem apenas um, mas sim uma grande variedade de objetivos, e por mais doloroso que possa ser, te fazer acreditar que é protagonista ou um agente de decisão não é um deles.
Cliente ou usuário?
Segundo relatos de antigos executivos, cofundadores de empresas, professores e pesquisadores da área, o papel de usuário nas redes sociais é comparado diretamente ao de usuários de drogas. “Existem apenas duas indústrias que chamam seus clientes de usuários: a de drogas e a de software” nas palavras do professor de estatística da Universidade de Yale, Edward Tufte.
Desmistificando o que as pessoas acreditam ser atualmente, o poder desses algoritmos e das empresas que os desenvolvem nos colocam em uma posição totalmente inversa a imagem de clientes com o controle sobre o que fazemos com os celulares em nossas mãos. Não somos os clientes. Com o crescimento das redes sociais e ferramentas tecnológicas de consumo e comunicação, na verdade, nós é que somos consumidos.
Se não temos a obrigatoriedade de pagar para usar e nem o poder de parar quando quisermos, causando qualquer dano ao funcionamento dessas companhias, então não temos nenhum poder para nos chamarmos de “clientes”, pois não estamos adquirindo nada delas que já não esteja sendo adquirido de nós mesmos.
Você que está lendo esse texto agora, quando for mudar o site a que está vendo, terá muitos papéis. Você será a matéria bruta, a ferramenta, o produto e até o serviço, mas não será, de maneira alguma, o cliente de muitas das empresas a que acessar a página.
O que as empresas querem?
Para contrariar toda a onda mercadológica e social de marketing, psicologia, relações públicas e até química que faz, há muitos anos, as pessoas acreditarem que as empresas lutam entre si para ganhar a atenção delas, as informações apresentadas nessa obra evidenciam algo que nem todos devem ter se conscientizado até então: as empresas se importam exclusivamente com os seus dados.
Notícias recentes já fazem as pessoas acompanharem e se informarem mais de como suas informações trafegadas nas redes sociais e em sites de consumo são utilizadas para boa parte das finalidades dessas empresas. O escândalo de dados da Cambridge Analytica com utilização do Facebook em 2018 incentivou essa consciência parcial. Contudo, os seus “dados” utilizados pelas redes sociais podem não ser o que você imagina.
O que isso significa? Não imagine seus dados como várias páginas de um relatório cheio de textos onde consta seu nome, idade, meios de contato, interesses, quais publicações você viu ou curtiu, quais produtos você pesquisou e quanto tempo você visualizou determinado conteúdo na tela de seu celular.
Imagine seus dados como uma abstração de quem você acha que pode ser e o que você acha sentir ou gostar, não como um dossiê que as empresas simplesmente leem ou vendem para outras, mas sim como a capacidade de conectar e modelar completamente seus futuros interesses, comportamentos, suas ações, sensações, opiniões pessoais e até políticas.
Nas cenas ficcionais da produção, parte dessa representação é feita com o uso de um holograma apático de sua fisionomia em constante movimento rotatório de atenção captada e incentivada pelos algoritmos, mecanismos computacionais que dão “vida” e funcionamento aos sites e programas de computador. O passo a passo do que a máquina deve fazer, e nesse caso, o que fazer com você.
Não há uma Inteligência Artificial que cria emoções raivosas e toma decisões de erradicar a humanidade como em alguns estereótipos da mídia. Os algoritmos não sabem o que é certo ou errado, e nem o que é verdadeiro ou falso, como no caso das fake news. Esses programas de computador só vão fazer, e aprender fazer, o que eles forem programados, “ordenados”, pelas permissões das estratégias dos desenvolvedores que mexerem em seus códigos, dentro das limitações dessa tecnologia atualmente.
Da mesma forma, não há a figura de um vilão com intenções maquiavélicas de controlar a mente das pessoas e dominar o mundo com sua empresa de tecnologia. O que há é a pura necessidade capitalista de lucros atuais e futuros analisando todas as mudanças de mercado e das pessoas que podem vir a acontecer.
A modelagem do que você vai comprar para a empresa que pagar mais por seus anúncios e estratégias é a chave do funcionamento dessas organizações que intermediam esses passos e garantem que serão beneficiadas por essas mudanças.
Várias das roupas que você veste, das comidas que você gosta, das opiniões que pensa e até dos filmes que você assiste podem vir de uma intuição intrínseca de sua consciência. No entanto, atualmente, a maior parte delas vêm diretamente do que essas manipulações massificadas fazem com que você passe a apreciar e se viciar.
A própria Netflix, que lançou essa obra, tem em seu modelo de negócios o uso de Big Data, técnicas de Ciência de Dados e psicologia para analisar as pessoas e criar as produções de forma que mais as atraiam de acordo com seus gostos e interesses para gerar sucesso à plataforma.
Sem se aprofundar no ramo da química ou da biologia, a efeito de mérito do que o próprio mundo dos negócios se utiliza para suas estratégias, o neurotransmissor dopamina, que nos libera a sensação de prazer e humor no cérebro, é muito abordado durante os executivos entrevistados na explicação do efeito viciante e gratificante gerado pelos recursos dessas ferramentas.
Quem são os responsáveis por isso?
Quem toma conta das redes sociais? Como apresentado no documentário, a maior parte de pessoas com altos cargos nessas big techs são homens brancos, jovens, com focos de estudos específicos, habilidades e personalidades relativamente muito semelhantes em uma mesma e concentrada região dos EUA.
Um nicho particular de pessoas que integra grandes papéis estratégicos em empresas que se espalham pelo mundo todo. Mulheres, crianças, idosos, pessoas de classes sociais, etnias e nacionalidades diferentes, todas se utilizam de marcas comandadas por um grupo seleto e idêntico de pessoas que, muitas vezes, tomam decisões que influenciam diversas culturas ao redor do planeta, sem nem mesmo imaginar as consequências.
Muitos desses executivos perceberam a predominância de suas influências pessoais nas estratégias globais dessas marcas e partiram, então, em busca de correções para questões importantes e problemáticas que eles mesmos fizeram parte da criação.
Em fundações e institutos para pesquisas e conscientização, assim como no próprio documentário da Netflix, essas influentes pessoas se desculpam e assumem sua parcela de culpa divulgando estratégias possíveis para se resolver os efeitos negativos das redes sociais.
Talvez, essas mesmas divulgações de sua “redenção” sejam as mesmas que nos levaram a passar por esses efeitos negativos para começo de conversa, mas o estudo de prós, contras e complexidades envolvidas podem realmente nos encaminhar a destinos melhores ou, ao menos, diferentes.
De quem é a culpa?
O grande filósofo Jean-Jacques Rousseau trabalhava em suas obras o conceito de que “o homem nasce bom e a sociedade o corrompe”. Entretanto, o que é a sociedade senão o agrupamento maior de homens?
Antes mesmos das atuais redes sociais, grande parte das mesmas estratégias de manipulação e convencimento já eram aplicadas por revistas, mídias analógicas como rádio, TV e nos clássicos exemplos de outdoors com propagandas e pesquisas de satisfação das empresas.
A tecnologia permitiu a diversificação desses serviços, bem como a massificação para maiores e diferentes públicos. Contudo, antes dos fundadores e CEOs dessas redes sociais iniciarem suas estratégias, já permitíamos e buscávamos os meios de criar e atender a esses prazeres, tanto como pessoas quanto como empresas.
As grandes empresas só se tornaram grandes porque nós mesmos as permitimos crescer para tal forma, e isso só foi possível porque sentimos os benefícios com o que elas nos fizeram conhecer e apreciar.
A infinidade de formas de utilização e o enorme número de interessados nesse meio pode ter tornado praticamente indistinguível separar de forma maniqueísta figuras específicas que nos levaram a situação atual, repleta de benefícios e malefícios que encontramos no caminho. No entanto, a facilidade limitar e nos apegar apenas às informações que nos interessem ou satisfaçam nunca foi tão possível e praticada.
O desejo humano por realizações, conquistas e prazeres maiores no menor tempo nos levou à consequência de nossas próprias ações, sem ter permitido respiros para analisar as medidas causadas por nosso passo à frente.
Como resolver o problema?
Nunca tivemos tanto acesso à informação, nunca tivemos tanto poder computacional que nos permite desde conversar com amigos e familiares em locais distantes do mundo até processar, em altas velocidades, cálculos e análises de vacinas e medicamentos para combater doenças mortais.
Divertimos nossas mentes com aplicativos de jogos, aprendemos novos idiomas, compartilhamos momentos especiais entre companheiros, economizamos com produtos mais em conta de certas empresas e criamos as nossas próprias para realizar sonhos ou mesmo gerar renda em momentos difíceis, tudo por meio da facilitação da tecnologia e das redes estabelecidas no meio dela.
Não precisamos nos desconectar de tudo e todos perdendo o conhecimento sobre nossos amigos, o mundo e sobre nós mesmos, mas também não devemos aceitar a analogia a usuários viciados sem o poder de parar quando quisermos e sem a abertura para diferentes conhecimentos.
Propósito e moderação são as palavras-chave dessa transição. Ter um objetivo a ser cumprido e uma estratégia para medi-lo podem ser as formas de sucesso para obter a produtividade ou o simples prazer sem deixar que um te faça esquecer do outro, dentro e fora das redes sociais.
Pense consigo mesmo: o que você realmente precisa das redes sociais? Em relação a isso, quais opiniões ou meios diferentes podem construir seu conhecimento ou entretenimento para alcançar essas necessidades? Por fim, quanto tempo você acha suficiente para utilizar isso de forma prazerosa sem dar as costas para o resto da sua vida ou de seus entes queridos?
O poder de decisão dentre as maiores possibilidades, usando tempo suficiente para refletir sobre elas e suas consequências, pode nos fazer voltar a sermos protagonistas de nossas próprias vidas.
** É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita. O Jornal 140 não se responsabiliza pela opinião dos autores deste coletivo.