Recentemente, ao ler um o livro de um historiador italiano chamado Alessandro Portelli, fui suscitado à seguinte inquietação: até que ponto conhecemos a história da nossa família? como teria sido a vida dos nossos pais, tios e avós?
Acontece que chegamos ao mundo desinformados e passamos a conviver com um grupo de pessoas, os nossos familiares, capturando informações no cotidiano que se conectam e permitem supor que conhecemos esses sujeitos. Entretanto, essa teia de informações não se constitui de maneira organizada e cronológica, são fios que tecemos de forma “natural”.
Essa inquietação provém, especificamente, da riqueza encontrada no relato do filho de um operário industrial, no início da década de 1930, ao ser questionado acerca das condições de trabalho do seu pai. Alberto Petrini fora entrevistado por Alessando Portelli:
Portelli – Seu pai te contava como era o trabalho lá?
Petrini – Bom, ele sofreu um acidente grave e saiu, saiu porque ficou em coma, ficou em coma por um ano
Portelli – Quando foi isso?
Petrini – Ah, eu era pequeno, era pequeno
Portelli – Como aconteceu o acidente?
Petrini – Bom, explodiu um forno, um forno explodiu em cima dele. Mais tarde eu fui trabalhar nesse mesmo lugar. Fui trabalhar lá porque quando eu estava na fábrica de aço eu era o representante do partido, e me mudaram de lugar de castigo. Era pra eu ficar longe das coisas, perder o contato com os companheiros ativos, com os companheiros das bases. Então eu trabalhei lá – eu tinha 30 anos – e lá eu vi o lugar onde o acidente do meu pai aconteceu. Eu lembro muito bem, eu tava aprendendo a andar… E depois disso ele segurou a família da melhor forma que podia.
Dentro desse pequeno fragmento, que recortamos da entrevista, é possível observar dois aspectos importantes: o uso da repetição e plano temporal intercalado (época do acidente e época que o narrador trabalhou no lugar).
Esses recursos atravessam o texto por um motivo simples: Petrini não está apenas descrevendo os eventos, mas construindo sua própria relação com eles, esse fator que distingue um relato, em sentido pleno, de um simples “testemunho”.
Esse tipo de construção discursiva é algo comum no cotidiano das nossas vidas. Relatos organizados e lineares são, por regra geral, produtos de rigor e construção por parte do narrador, exigindo certo grau de manipulação.
O relato de Petrini carrega fragmentos que misturam sua infância e sua vida adulta, apontando marcas da sua vida que ele considera dignas de atenção, como ao falar da sua atuação política – mesmo que a pergunta fosse referente ao acidente do seu pai.
O uso da repetição na fala (“eu era pequeno, era pequeno”) traz um recurso compreendido como reiteração incremental, uma forma do narratário assegurar a dramaticidade do seu relato.
Consideramos que o discurso oral está sempre a um passo de perder e de recuperar o controle. A palavra oral se dissipa assim que é falada; só pode ser recuperada e mantida sob uma forma estável quando dita ou redita. Sendo assim, a reiteração é uma necessidade técnica.
A repetição e a variação são aspectos estritamente ligados ao mundo da oralidade, dessa forma podemos observar que ao conversarmos com nossos familiares, geralmente, esse tipo de recurso entra em cena ao situar um evento do passado. Acontecimentos da vida pessoal são apontados dentro da trama, traçando paralelos entre os tempos que se atravessam.
Dessa forma é possível observarmos que, de forma geral, não conhecemos a história da nossa família de forma linear. Apenas a partir de interpretações, variações, repetições e apontamentos que atravessam nossa vivência. Talvez um dia possamos sentar ao lado dos nossos entes queridos e buscar entender mais detalhes do seu passado, dos seus dramas, das suas aventuras. Talvez esse dia seja hoje.