A composição de Gonzaguinha que intitula nosso texto ressalta uma infância que enxerga a beleza da vida, em sua pureza e simplicidade. Sentimos uma afeição ao conceber a infância nesses termos, entretanto nem sempre esse sentimento pelas crianças existiu.
Conforme o historiador francês Philippe Ariès, na sociedade medieval, o sentimento de infância não existia. O que não significa que as crianças fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas. Mas não se tinha consciência da particularidade infantil. Por essa razão, assim que a criança tinha condições de viver sem a dependência da mãe ou de sua ama, ela ingressava na sociedade dos adultos e não se distinguia mais destes.
Ariès cita documentos medievais para apontar que a criança muito pequenina, demasiado frágil, “não contava”. Elas não contavam porque podiam desaparecer a qualquer momento, dados os elevados índices de mortalidade nessa fase. O historiador cita a fala de Montaigne: “perdi dois ou três filhos pequenos, não sem tristeza, mas sem desespero”.
Conforme a análise de Philippe Ariès, a compreensão acerca da infância começou a aflorar em meados dos séculos XVI e XVII, tornando-se perceptível a partir da confecção de trajes especiais que distinguiam as criancinhas dos adultos. Um novo sentimento da infância passava a surgir, em que a criança por sua ingenuidade, gentileza e graça, se tornava uma fonte de distração e de relaxamento para o adulto, um sentimento que Arriès classifica como “paparicação”.
Nesse contexto também emergiam críticas ao zelo demonstrado às crianças, como a exercida por Montaigne:
“Não posso conceber essa paixão que faz com que as pessoas beijem as crianças recém-nascidas, que não têm ainda nem movimento na alma, nem forma reconhecível no corpo pela qual se possam tornar amáveis, e nunca permiti de boa vontade que elas fossem alimentadas na minha frente”.
Numa entrelinha, dos sentimentos de carinho e o descontentamento com a infância, procurou-se conciliar a doçura e a razão, como aponta o pensamento do abade Gousault, situado em 1693:
“As crianças são plantas jovens que é preciso cultivar e regar com frequência: alguns conselhos dados na hora certa, algumas demonstrações de ternura e amizade feitas de tempos em tempos as comovem e as conquistam. Algumas carícias, alguns presentinhos, algumas palavras de confianças e cordialidade impressionam seu espírito, e poucas são as que resistem a esses meios doces e fáceis de transformá-las em pessoas honradas e probas”.
Philippe Ariès conclui sua análise situando que nos séculos subsequentes a preocupação com a higiene e a saúde física da criança passaria a ocupar um lugar primordial nos debates intelectuais. Tudo que se referia às crianças e à família tornara-se um assunto sério e digno de atenção. A projeção do futuro fazia com que a criança passasse a assumir um lugar central dentro do núcleo familiar.
Os pais passariam a cogitar nos filhos ambições que não conseguiram alcançar. Buscando construir bases para que as crianças tivessem um futuro melhor. Esse estudo concerne ao Antigo Regime europeu, todavia podemos observar muitas permanências desse pensamento nos dias atuais.