Gustavo Gaiofato é historiador, professor e youtuber no canal História Cabeluda. No dia 03/11/2020, conversamos sobre História e contemporaneidade:
Como surgiu sua ideia de criar conteúdo online?
Sempre tive muito interesse em estudar, investigar especialmente as questões ligadas às ciências humanas. Também sempre quis ser professor. O modelo de criação de conteúdo apareceu com meus estudantes, como demanda da pandemia. E foi tomando um rumo diferente. Tem me feito muito bem propagar essa ideia de conhecimento, de que sua construção pode ser acessada pela coletividade. Algo que também tive desde pequeno é a ideia de dar propósito a ele.
Há pessoas que te inspiram?
Eu tive professores importantes em meu caminho formativo, quem eu olhava e enxergava a paixão, um sentimento particular que eu tenho a sensação de compartilhar: é uma catarse, uma ideia de estar ali, presente.
Vejo referências em pessoas que também moldaram as estruturas de seu próprio tempo. Desde moleque me vi admirado pela figura do Che. Pela de Jorge Amado, quem contatei pela literatura logo no colégio. Há quem eu considere genial, como Marx e Engels; e quem possuo profunda admiração por, como Adorno e Malcom X.
Vou fazer mais um top 3: José Sérgio Fonseca de Carvalho, meu professor de introdução de estudos da educação com enfoque filosófico, quem me fez olhar para a ideia de aprendizagem sob uma outra perspectiva. A professora da licenciatura Adriana Bauer, quem me deu muitas ferramentas para aprender processos da escola. E uma das minhas inspirações máximas, Walter Benjamin.
Por fim, cito uma pessoa muito inteligente, que tem uma bagagem cultural sensacional, por quem tenho grande carinho e admiração: Guilherme Terreri/Rita von Hunty.
O que são as ciências humanas, que parecem te encantar?
“Ciências humanas” é uma expressão que denota uma grande multiplicidade de ações e pensamentos. Ela traz enorme complexidade da condição humana, das condições que perfazem a identidade da humanidade.
Estas ciências são apoiadas na filosofia – que não é uma ciência humana. A filosofia é a filosofia, como diz Heidegger ao questionar como poderia ela ser ciência, se a ciência é gerada a partir da indagação filosófica. Antes da filosofia, pois, existe o filosofar. Isso permeia muito o ambiente da formação do que são as ciências humanas.
E o que é a História?
Puxando Walter Benjamin, a História se encaixa no contexto das ciências humanas porque não é somente o registro dos acontecimentos. Essa é uma parte dela mecânica, regulada. História é o ato de se contar alguma coisa, o ato de lembrar, mais do que memorizar.
Pensemos em um jogo de memória: você destaca as cartas, lembra de onde estão, e assim que as localiza, acabou. A História por muito tempo foi pensada desse jeito, e ainda é, como visto, por exemplo, em aulas voltadas ao vestibular.
É falacioso pensar em estudar História para aprender sobre o passado e não cometer seus erros no futuro. O passado não está encerrado, está aqui. São os fantasmas que percorrem nossos espaços.
Vejo a História como um processo de resgaste, não do fato pelo fato em si, mas a partir de uma óptica de retomar aquele evento e percebê-lo como um evento em si mesmo.
A História é neutra?
Pensemos que a História foi escrita, definida por alguém. Assim, não tem a neutralidade de um jogo da memória, está besuntada de ideias. A humanidade não é neutra. Vemos hoje que a neutralidade representa um passo ao abismo do fascismo. Como materialista histórico, digo que, se a História é um produto das relações humanas, não pode ser esvaziada de sentido e propósito. Este, mais que constatação de fatos, é a permissão de um olhar crítico ao passado, um lembrar, o que é diferente de memorização. A memória é algo pouco fértil, que você grava e acessa. A lembrança é algo que perpassa pelo ideal de retomada daquilo para você, de revivência.
Esta lembrança do passado que é o combustível motor para a luta no presente. E não digo para pensar no futuro, o futuro não existe, não está aqui. O que temos é o presente, e o que a gente faz no presente é o que coloca as condições para um futuro diferente. Por exemplo, olhemos para as lutas e pensemos que é possível resgatá-las. Esse é o motor de combustível que a direita faz para reforçar a narrativa, lembrança de dominação e hierarquia tradicional.
Você falou em narrativa… Como você descreve a disputa por ela?
Se a História é um produto feito a partir da óptica de quem a produz, é vendida uma narrativa. Esses produtos formam a nossa concepção do que foi, do que é e do que pode vir a ser. Então, há grupos que disputam essa narrativa, afinal, quem controla a produção histórica controla o passado. Se o passado está no presente, tais pessoas controlam o presente.
Vamos a um exemplo: influências da extrema direita falam que Stálin matou 60 bilhões. Isso é produto de uma narrativa liberal, capitalista, que vende as experiências socialistas como fracassos. Muitos podem comprá-la se, como Paulo Freire fala, não temos uma educação emancipatória, que nos ensina a olhar os elementos e moldar nossa consciência crítica a partir da nossa realidade. As pessoas falam dos expurgos de Stálin. Mas não existem expurgos na Europa, não existem campos de concentração nos EUA? E no Brasil, como são as condições de trabalho das populações periféricas? O que faz uma família para acessar um pacote de arroz? Usemos a balança da História: aonde o capitalismo levou a América Latina, Ásia e África? Para o buraco da exploração, mais-valia, violência e do racismo.
Enfim, a disputa da narrativa se dá a partir do uso da História para um fim. A qual fim você está alinhado? Por isto que a história não é neutra, por não existir narrativa imparcial.
Neste sentido, o que você diz do Bolsonaro?
O Bolsonaro nada mais é que o produto de uma narrativa que se diz anti-sistêmica, mas é moldada pelo próprio sistema. Grades mídias participaram da manipulação narrativa, como bem exemplificado em 2018, quando um Jornal o equiparou com alguém que possui maior mérito acadêmico, científico e humano.
Bolsonaro defende a ditadura militar. Essa não é a narrativa dominante atualmente. Mas ele quer que se torne. Assim, enterrará seus fantasmas, tais como os corpos de desaparecidos que jazem onde ninguém sabe. O esquecimento sem redenção é um grande perigo.
Você diria que a disputa da narrativa faz uso de revisionismo e negativismo histórico? Como você define esses movimentos?
Revisionismo e negacionismo são utilizadas para perpetuar a narrativa hegemônica ou subverter a existente. São processos insistentes em uma linha narrativa que, muitas vezes, não tem documentos, apropriações ou levantamentos feitos com minúcia e critério. Acontecem, quando, por exemplo, alguém olha os documentos da Comissão Nacional da Verdade ou dados da OMS e diz “isso aqui é coisa de comunista”.
Isto ocorre porque a narrativa está aí para as pessoas, ninguém nasce sem, vive sem e morre sem. E se a pessoa começa a ser confrontada com a verificação histórica, sua narrativa passa a ser questionada. O ser sem narrativa não é nada. Sem a linguagem, sem mostrar que ele está presente no tempo, ele não é ninguém. Então, pertencer à uma narrativa é algo muito importante. Não é à toa que as pessoas que abraçam discursos de protofascistas são frequentemente pessoas que, durante essa onda progressista da América Latina, perderam seus privilégios porque a narrativa histórica mudou, de forma a não fazer mais parte dela. Então, olham para os fatos e os negam. É comum, ainda, que digam “não tenho ideologia, sou imparcial, vejo os fatos”. Como Zizek fala, que o momento em que você acha que saiu da ideologia é o qual está mergulhado nela.
Para finalizar, você tem uma indicação de leitura para refletirmos quanto ao que foi conversado?
Teses sobre o conceito de História, de Walter Benjamin. Minha favorita é a nona. Mas, agora, leio a sétima:
“ ‘Pensa na escuridão e no grande frio
Que reinam nesse vale, onde soam lamentos.’ – Bertolt Brecht
Fustel de Coulanges recomenda ao historiador interessado em ressuscitar uma época que esqueça tudo o que sabe sobre fases posteriores da história. Impossível caracterizar melhor o método com o qual rompeu o materialismo histórico. Esse método é o da empatia. Sua origem é a inércia do coração, a acedia, que desespera de apropriar-se da verdadeira imagem histórica, em seu relampejar fugaz. Para os teólogos medievais, a acedia era o primeiro fundamento da tristeza. Flaubert, que a conhecia, escreveu: “Peu de gens devineront combien il a fallu être triste pour ressusciter Carthage” (poucos vao adivinhar como foi triste trazer Cartago de volta à vida). A natureza dessa tristeza se tomará mais clara se nos perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corveia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo.”.
Para saber mais:
Canal História Cabeluda: https://www.youtube.com/channel/UCqbz_4hrf2D58UFBOleuFnQ
Podcast História Cabeluda: https://open.spotify.com/show/2KnVgdfhtpbsv3JyxjlJ1t
Instagram História Cabeluda: https://www.instagram.com/historiacabeluda/
Teses sobre o Conceito de História – Walter Benjamin: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3957253/mod_resource/content/1/Teses%20sobre%20o%20conceito%20de%20hist%C3%B3ria%20%281%29.pdf