Não existe não nada pior, ao analisar uma série ou filme, do que usar a expressão unanimidade, especialmente quando o objetivo é massacrar a obra que está nos holofotes. Veja o caso de Star Trek – Discovery, produção que retoma a franquia de Jornada nas Estrelas, cuja última série produzida para a TV foi Jornada nas Estrelas – Enterprise, que terminou quatro anos após sua estreia em 2001.
Discovery foi uma aposta que a CBS fez para chamar a atenção de seu canal streaming nos Estados Unidos, o CBS All Access. Nada melhor do que trazer o Universo criado por Gene Roddenberry nos anos 60 para, através dos fãs, os trekker, mostrar que o canal streaming existe e tem conteúdo inédito e de qualidade. Além disso, ele também disponibiliza as séries da grade de programação da Rede CBS mas também programas, filmes e noticiário, a mesma formula adotada pelo Globoplay, no serviço on-demand.
Nos bastidores da pré-produção, Bryan Fuller, roteirista e criador de séries como Dead Like Me e Deuses Americanos, apresentou a ideia de fazer uma antologia com Jornada nas Estrelas. Assim como acontece com American Horror Story, de Ryan Murphy, onde cada temporada seria apresentada uma face do Universo de Jornada nas Estrelas, começando com Discovery, onde a trama seria conduzida por um oficial de menor patente e não o capitão da USS Discovery, como seria mais tradicional.
OK, vamos criar algo diferente e atrativo que, certamente, fará o fã assinar o serviço do CBS ALL Access e, com sorte, mostrar o caminho para quem não é fã mas gostaria de ver uma boa produção de ficção científica. É claro que tudo isso era uma discussão acadêmica, já que por diferenças criativas, Fulller saiu da série deixando quem sobrou com a responsabilidade de seguir em frente com o projeto com uma primeira temporada em andamento. Para os executivos da CBS All Access, o resultado se teriam acertado no lançamento da série viria com o relatório de assinaturas canceladas após a série entrar no ar.
Diferente do que muita gente ficou acostumada com o efeito Netflix, a série Discovery será exibida como se fosse programada por uma emissora de TV tradicional, com um novo episódio estreando semanalmente. Essa ideia também tinha por trás o objetivo de medir a continuidade da série. Se não atingisse seus objetivos, Discovery duraria uma temporada. O que aconteceu, como se pode ver até hoje, foi o contrário.
O sucesso da série não ficou em cima do voluntarioso público-fã de Jornada nas Estrelas. Ao contrário, muitos dos fãs, especialmente os que já assistiram as séries anteriores, especialmente a Clássica de 1966, foram árduos combatentes e críticos ferozes a cada nova temporada. A primeira “briga” foi com o fato de que a série cronologicamente se passa cinco anos antes da tripulação da Enterprise ser comandada por James T. Kirk (William Shatner), mas a tecnologia da USS Discovery é centenas de anos à frente da USS Enterprise e outras naves da Federação.
A “briga” se intensificou quando um dos episódios mostra um hollodeck, uma sala com projeção de simulações de combate e recreação realistas, conceito que foi introduzido na série Jornada nas Estrelas – A Nova Geração, que se passa perto de 80 anos da série Clássica. Mas o inferno na Terra foi conjurado quando os produtores, numa tentativa de sair do buraco criativo em que se meteram, decidiram mudar radicalmente o rumo da temporada introduzindo o Universo Espelho, um mundo paralelo onde a Federação Unida de Planetas é a versão do mal da entidade que conhecemos.
É provável que muita gente na linha de produção da série deve ter se questionado sobre a ideia original de Bryan Fuller, já que poderiam fazer qualquer história sendo uma antologia. Como a Inês já estava morta, Alex Kurtzman, trekker de carteirinha e responsável pela atualização da série no cinema sob a batuta de JJ Abrams, assumiu o controle criativo não só da série Discovery, mas apresentou um plano de novas produções para a TV, como Star Trek – Picard, tirando o carismático capitão Jean Luc Picard (Sir Patrick Stewart) da aposentadoria, e anunciando outras séries, duas delas animadas Star Trek – Lower Decks e Star Trek – Prodigy, que será exibida pela Nickelodeon.
Kurtzman, trouxe para o primeiro time de produção e roteiro sua parceira da série Sleepy Hollow, April Nocifora, e começaram a redesenhar a segunda temporada, enquanto vários aldeões da vila exibiam tochas ardentes para atirar sobre todos, dos produtores, roteiristas e elenco de Discovery. A ideia é criar um evento universal que permitisse a tripulação, liderada pela tenente-comandante Michael Burnham (Sonequa Martin-Green), sair daquele aperto inicial e colocasse a série como uma legitima herdeira de Gene Roddenberry.
A solução ousada e onde nenhum outro produtor jamais esteve, foi lançar Michael e seus companheiros de nave estelar a quase mil anos no futuro, exatamente onde começa o terceiro ano da série. Isso, claro, foi uma resposta a hostilidade dos fãs mais radicais, uma vez que não se conhece um futuro tão distante dos elementos de Jornada nas Estrelas, é possível criar algo novo e interessante.
A história deixa Michael sozinha durante um ano, antes da chegada da Discovery que, rumou em direção a uma fenda espacial em direção a esse futuro para evitar um combate letal contra uma Inteligência Artificial do mal. Durante esse ano, Michael descobre que não existe mais a Federação, que foi desarticulada há pouco mais de cem anos por causa da Queima, um evento cataclísmico que destruiu todas as naves que usavam cristais dilítio como combustível.
Esse começo meio lento lembra algumas ideias que Roddenberry teve antes de falecer como Andrômeda, que mostrava um universo antes organizado por uma grande Comunidade (The Commonwealth) e que se perdeu no tempo e no espaço. Cabe agora ao comandante Dylan Hunt (Kevin Sorbo), capitão da ultima astronave da época, a Andromeda, que ficou congelada à beira de um buraco negro, tentar recuperar o que sobrou da Comunidade.
Existem, claro, momentos em Discovery que valem à pena seguir em frente, mesmo com o demasiado drama exibido pelos personagens principais, perdidos no espaço. O encontro no planeta dos Trills, a prisão dos Orions, o reencontro com a nova Federação e a descoberta do mistério relacionado à Queima, são alguns dos pontos fortes da história. A crítica principal fica por conta dos sentimentos humanos de Michael, cada vez mais presentes. Afinal, ela foi criada pela disciplina vulcana de não ceder aos sentimentos, será que um ano sem seus companheiros da nave estelar a deixaram fraca?
Nada de respostas simples e triviais. Star Trek Discovery entrega o que propõe, mesmo com tanta hostilidade de parte dos trekker. É uma temporada com um conceito novo de aventura espacial, com personagens que reafirmam os ideais criados por Roddenberry há quase sessenta anos, e com direito a pequenas surpresas como a promoção de Micheal. O arco formado pelos três últimos episódios da série sedimenta Discovery como uma série de Jornada nas Estrelas. A quarta temporada já está em planejamento.