Somos homens bons? Provavelmente essa não é uma questão que surge com frequência no nosso cotidiano. Apressados pela vida acelerada e as tarefas rotineiras, acabamos negligenciando questões mais existenciais e focando nas nossas obrigações.
Entretanto, existem alguns momentos que a ausência de reflexão pode incidir na negligência, uma modalidade de inércia perigosa, sobretudo, quando do outro lado, existem vidas em risco.
Recentemente, ao participar de um grupo de estudos políticos, fui convidado a ler um livro intitulado A máquina de fazer espanhóis, do literato Valter Hugo Mãe. Essa leitura me suscitou várias inquietações e me levou a fazer conexões com textos lidos outrora. O autor inaugura sua narrativa com um tópico intitulado “o fascismo dos homens bons”.
Somos bons homens, não digo que sejamos assim uns tolos, sem a robustez necessária, uma certa resistência para as dificuldades, nada disso, somos genuinamente bons homens e ainda conservamos uma ingênua vontade de como tal sermos vistos, honestos e trabalhadores […]
Em linhas gerais, essa concepção parece ser compartilhada por grande parte da sociedade, até mesmo por sujeitos que intitulamos “fascistas”. Muitos deles não se compreendem como sujeitos maldosos, acreditam estar agindo a favor de seus princípios e até mesmo respeitando a lei.
Essa noção pode parecer espantosa para nós, entretanto é interessante mergulhar numa história do imaginário social para observar como é recorrente a colaboração de “homens bons” para regimes autoritários ou políticas de intolerância.
Hannah Arendt, no livro Eichman em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, observa que um dos principais organizadores do Holocausto, Adolf Eichman, se considerava um mero funcionário público. O Obersturmbannführer coordenava a logística de deportações em massa de judeus para os campos de concentração e geria os extermínios em massa.
Assim como outros sujeitos que apoiaram a escravização, regimes ditatoriais e a inquisição, Eichman se julgava apenas “um cidadão respeitador das leis, ele cumpria seu dever, ele não só obedecia ordens, ele também obedecia à lei; Eichman, com seus dotes mentais bastante modestos, era certamente o último homem na sala de quem se podia esperar que viesse a desafiar as ideia e agir por conta própria”.
A partir desse exemplo podemos observar como muitas vezes o fascismo pode ser banalizado no cotidiano. Dissolvido no dia a dia pode ser assimilado como uma atividade comum.
Pensemos: O porteiro dos campos de concentração poderia ser um sujeito carinhoso com os filhos e um esposo amável? São perguntas que incomodam e podem gerar dor nas famílias que perderam entes queridos. Mas vamos percebendo que o fascismo pode ser praticado por homens bons. Todos nós somos potenciais fascistas.
Hannah Arendt constata que até mesmo a promotoria que julgava Eichman havia percebido que o homem não era um “monstro”:
Por mais monstruosos que fossem os atos, o agente não era nem monstruoso, nem ‘demoníaco’; a única característica específica que se poderia detectar [era] (…) uma curiosa e bastante autêntica incapacidade de pensar.
Nesse sentido, um possível recado extraído desse estudo incide no exercício duma autocrítica dos nossos atos, antes de apontar o fascismo externo é necessário deglutirmos aquele que existe em nós. Provavelmente não somos nenhum Eichman, mas nem sempre o fascismo mostra a cara de forma nua.
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