São brutais as obras autobiográficas. Nelas misturam-se os fatos com as impressões subjetivas e algo escapa das palavras; os acontecimentos são implacáveis e algo muda de acordo com a narrativa vigente.
E o que causa estas produções? Selecionei três livros nascidos de desejos relacionados à apropriação do passado e à elaboração de angústias referentes à finitude.
Confira histórias vividas e contadas por três dos maiores escritores contemporâneos:
Contra Mim – Valter Hugo Mãe
VHM coloca seus sentimentos, suas vivências e apreensões em todas as suas obras. Em poesias está sua história de forma menos contida, mas ainda misteriosa. Em Contra Mim, muito do que já escreveu é conectado e colocado em uma perspectiva mais ampla: seu mais recente livro (2020) não possui decoros.
O escritor debruça-se sobre sua infância e parte da adolescência. Expõe a imigração, a morte do irmão, o sofrimento na escola, o apego à mãe, as descobertas sexuais e a inclinação às artes, mas, sobretudo, disserta sobre a dor, o amor e o manejo das palavras.
A leitura é direta. Consiste em uma experiência dura como a realidade, porém acalentadora pois é construída com o lirismo com que Valter Hugo Mãe enxerga o mundo desde menino.
Diário de Inverno – Paul Auster
É impossível estimar quantas manhãs virão, embora depois dos sessenta exista a certeza de que serão menos do que as que já foram: trata-se do inverno da vida.
Há quase duas décadas, um dos maiores escritores anglófonos se viu nesta fase de escancaramento da própria finitude. Sua resposta é uma obra caleidoscópica que mistura reflexões do presente com memórias sem ordem cronológica.
A voz é um ponto especial na narrativa. Em segunda pessoa, Auster distancia-se dos fatos e coloca o leitor em sua pele. Assim somos transportados ao menino que assistiu à morte de um colega atingido por um raio, rapaz que transou com uma prostituta amante de Baudelaire, homem que sobreviveu a um acidente de carro e velho fechado em um quarto, literariamente acertando as contas com sua existência.
Patrimônio – Phillip Roth
Seus pais morrerão e não há nada que você possa fazer quanto a isso.
Esta é a lição que um dos maiores autores norte-americanos externa ao relatar os últimos anos de seu pai. Ele assistiu o octagenário Herman Roth durante seu adoecimento, da investigação de seus progressivos sintomas motores ao final sua vida. Coube a ele receber o diagnóstico, reportá-lo ao enfermo, decidir se ele iria ou não à mesa de cirurgia e, enfim, determinar quando as máquinas que o mantiveram respirando seriam desligadas.
A narrativa do autor é fiel ao impacto do Real, impiedosa mesmo quando aborda amor e admiração. Acompanhar o caminho para um fim é uma tarefa complexa, ainda mais dura quando se apreende o que “patrimônio” significa para o narrador, que chegou ao vazio sem desfazer-se do imperativo de não esquecer nada.
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