(Aviso de conteúdo: o texto abaixo contém revelações das histórias dos livros)
Gabriella Mikaloski é amante da literatura, graduada e mestre em Letras pela UFRJ. Estava conversando com ela pelo Instagram (@gabimikaloski) sobre leituras contemporâneas e chegamos a um dos nomes mais frequentes no momento: Elena Ferrante.
Nós nos debruçamos sobre diferentes obras da autora, tivemos impressões diversas e muita curiosidade a respeito das apreensões uma da outra. No fim, percebemos que em nossa interlocução havia uma matéria.
Gabriella: Comecei a ler a Tetralogia despretensiosamente. De primeira, eu tinha até deixado de lado. Depois recomecei e devorei. Há muito tempo um livro não me envolvia dessa maneira. Foi uma ressaca difícil de superar no final!
Paula: Já haviam me recomendado ler Ferrante, mas, até então, o que mais me chamava a atenção era o mistério relacionado à sua identidade. Há um boato de que suas mãos são as da tradutora napolitana Anita Raja. Porventura, ela é casada com um escritor napolitano de quem gosto, Domenico Starnone. Associando livremente, fui tomada por curiosidade acerca de uma outra Nápoles.
Comecei por um romance e rapidamente li os demais. O que me prendeu neles foram as histórias. Elena narra bem, o que diria que é o maior recurso de sua escrita, e seus temas são de fácil identificação.
Gabriella: Qual é a perspectiva narrativa dos romances que você leu? Como é a narração?
Paula: Os quatro romances são narrados por personagens mulheres, ou seja, decorrem de suas subjetividades, são preenchidos por seus pensamentos. A Filha Perdida (2016), acontece sob o olhar de Leda, professora de meia idade, divorciada, mãe de filhas crescidas. Dias de Abandono (2016) é vivido por Olga, que está se separando do pai de suas duas crianças, companheiro com quem esteve por quinze anos. Um Amor Incômodo (2017) tem a voz de Delia, quadragenária enlutada pela morte de sua mãe. Já em A Vida Mentirosa dos Adultos (2020) eis a adolescente Gianni, que está deixando a infância e suas inocências para trás.
Gabriella: Você notou alguns traços semelhantes entre os romances? Algo recorrente?
Paula: Todos os romances abordam temas do universo feminino sem amarras a maniqueísmos. A maternidade é retratada com suas ambivalências, Ferrante constrói mães com qualidades salientes, que vivem relacionamentos imperfeitos e são atravessadas por cansaço, raiva, inverdade e sede de espaço. Suas representações de relacionamentos românticos são honestas, contemplam desde a atração até as dores das piores desilusões. É também muito interessante o fato de o sexo fazer-se um elemento da vida das personagens em diversas etapas do desenvolvimento: Elena narra primeiras experiências homo e heteroeróticas, encontros adultos insatisfatórios, fantasias, adultério e casos na terceira idade.
Gabriella: Também me deparei com a questão sexual. Na tetralogia, achei que esses momentos aconteceram bem objetivamente, até de maneira bem crua e naturalizada. Claro que com as questões do feminino, mas diretamente.
Paula: Podemos pensar na Tetralogia como uma obra de formação?
Gabriella: Acredito que podemos dizer que é um romance de formação, sim, mas eu iria um pouco além. A tetralogia é a história de uma amizade entre duas meninas, que, ao longo da narrativa, viram mulheres. O começo é motivado pelo desaparecimento de uma delas, de modo que a outra, a narradora, escreve para registrar o máximo possível sobre a amiga. Sobre ir além, é porque acho que há formação e há um espelhamento bem truncado entre essas duas amigas. O tempo todo só temos a perspectiva da narradora, coisa que já tem que deixar a gente ligada. Lenu, a narradora, vive muito em relação à amiga, tem dificuldade de se desvencilhar de uma perspectiva dessa outra pessoa, que, em muitos momentos, em uns mais do que em outros, espera também algo dela. Então tem sempre esse espelhamento que transborda e invade setores que poderiam ser independentes dessa amizade, mas não conseguem ficar de fora dela.
Paula: Estou achando interessante imaginar o lugar em que essa narradora se coloca, tendo sempre uma Outra específica como referência. Suponho que haja um sofrimento considerável envolvido nisso.
Você falou sobre meninas tornando-se adultas… Elas chegam a ser idosas? Gostaria de saber como ela é retratada na tetralogia.
Gabriella: A velhice na tetralogia, em teoria, é mais retratada no último livro, História da menina perdida. Este é o momento em que, cronologicamente, ambas estão idosas. Em alguns momentos dos outros livros, tem flashbacks, mas são breves.
O primeiro romance começa inclusive assim, em flashback: o filho de Lina liga para Lenu falando que a mãe desapareceu sem deixar rastro. Mais do que sem deixar rastro do paradeiro, foi sem deixar rastro da existência. Tudo sumiu, ela, fotos, documentos. A amiga recebe a notícia com certa raiva, porque já sabia que essa vontade de “se apagar” era um desejo antigo de Lina. Assim, a escrita começa como uma espécie de vingança ou rancor, já que a narradora começa a colocar em palavras tudo o que se lembra de Lina, desde o momento em que se conheceram. A partir daí, a narrativa toma um rumo mais cronológico, apesar desses outros breves deslocamentos temporais.
Voltando ao último romance, a parte narrada da velhice tem um subtítulo: “História do rancor”. Esse nome vem porque é o momento em que sabemos que as amigas perderam contato quando Lenu fez algo que Lina a fez jurar que nunca faria: escreveu sobre ela. Lenu publica seu mais recente livro, chamado A amizade, em nome de um receio de ficar esquecida no presente, marcada por um sucesso anacrônico. Esse livro, que conta a história da amizade das duas, rapidamente faz muito sucesso. Sabendo que descumpriu a promessa, Lenu acha que Lina acabaria por perdoá-la depois de ler o romance, mas não é o que acontece. Este é o momento em que o laço entre elas é rompido de vez. Alguns anos depois, Lina acaba por sumir definitivamente. A própria tetralogia se revela como uma tentativa de se acalmar (a expressão é da narradora), de dar forma à existência da amiga. Ao final, Lenu recebe misteriosamente as bonecas perdidas que ambas possuíam na infância. Isso vem como um sinal cifrado da observação de Lina. Essas bonecas são importantes, porque esse momento é como atar as pontas da vida: na infância, no primeiro romance, a amizade das duas é selada no momento em que uma joga a boneca da outra num porão escuros e as duas vão juntas, de mãos dadas, tentar encontrar as bonecas, sem sucesso.
De um ponto de vista mais psicológico, acho que, como na vida, a velhice no romance é o momento em que a narradora está colocando em perspectiva a própria jornada, que é sempre, de maneira até obsessiva, colocada em relação à jornada de Lina. Lina nunca sai do bairro da infância, Lenu desbrava o mundo. Lina abandona a escola, Lenu completa os estudos e se torna escritora. Lina é manipuladora, Lenu é insegura. Sempre esse dualismo.
Gabriella: E como surgiu seu interesse pela velhice?
Paula: Surgiu nas observações cotidianas, mas foi ajustando-se na minha trajetória acadêmica. É um dos assuntos que considero frutífero estudar associando psicologia à literatura. A primeira dá substrato teórico e recurso clínico, a segunda sensibiliza, retrata contextos e subjetividades possíveis.
A obra da Ferrante pode ser proveitosa para estudos com essa conexão!
Paula: Então, queria saber se você vê alguma relação entre a personagem da tetralogia querer se apagar com o fato de Elena Ferrante usar um pseudônimo.
Gabriella: Eu acho que o apagamento de Lina é uma representação ficcional do que Elena Ferrante faz fora da ficção: desaparece. Esse desaparecimento, no entanto, não é sinônimo de não se mostrar. Os romances da tetralogia têm um trabalho de linguagem muito minucioso e algo de que gosto muito é que eles podem ser lidos como uma história convencional, em que os fatos vão nos intrigando, e como um trabalho narrativo que carrega um mistério mais subterrâneo. Com isso em mente, a gente pode encontrar muito de Lina nas pistas que ela deixa, assim como encontramos muito de Ferrante, seja seu nome qual for, no jogo de linguagem. É curioso que a narradora tenha o mesmo nome do pseudônimo da autora, que a Elena-narradora seja uma escritora super tocada pelo autobiográfico… Tem um fenômeno pelo qual Lina passa às vezes chamado desmarginação. É uma espécie de falta de chão absoluta, quando a personagem sente que o mundo e as coisas que nele residem estão disformes, desorganizadas a nível do insuportável. Pensando talvez que Lina pode ser um alter ego de Elena Ferrante, dá para viajar um pouco e dizer que essa desmarginação é uma imagem dessa tentativa de organizar a própria escrita. É uma abertura, eu acho, sabe? Agora, abertura a que… a gente tem que ir descobrindo e ressignificando ao longo da nossa experiência de leitura.