Na década de 1990, Chico Science e Nação Zumbi, na famosa canção “A Cidade”, já anunciavam: “A cidade não para. A cidade só cresce. O de cima sobe. E o de baixo desce”, em denúncia às relações de poder e à exclusão social, presentes na vida dos moradores de Recife. Três décadas se passaram e estruturalmente pouca coisa mudou. A realidade de exclusão e aprofundamento das desigualdades continua a assolar nosso país, hoje marcado pelo desemprego, a fome que atinge 19 milhões de brasileiros e a crise sanitária que já levou a vida de mais de 330 mil pessoas, sem que se vejam maiores considerações sobre isso na agenda do Governo Federal. Enquanto ações sociais, filantrópicas e assistenciais se desdobram para atender os mais vulneráveis, a discussão e aprovação de uma reforma tributária – que deve ser justa e progressiva – se arrasta no Congresso Nacional.
Arthur Lira, Presidente da Câmara dos Deputados, declarou no mês passado que a aprovação da Reforma Tributária não deve ser rápida e que deve levar de 6 a 8 meses, o que tornaria inviável sua aprovação neste ano. O relator, Deputado Aguinaldo Ribeiro, deve apresentar o texto em breve à Casa. Aguinaldo Ribeiro quer unificar os diferentes pontos que circulam nas casas, Câmara e Senado, e apresentá-los em uma única proposta. Uma convergência entre os textos apresentados é a simplificação da cobrança de tributos, unificando aqueles que incidem sobre a produção e a comercialização de bens e serviços.
O debate sobre a Reforma Tributária no Brasil acaba por considerar temas relativos à simplificação da cobrança e não encara as discussões mais estruturais sobre as anomalias do sistema, o que pode inviabilizar a consolidação do Estado Social, inaugurado pela Constituição Federal de 1988, e que é a principal ferramenta de combate às desigualdades sociais.
No mundo, temos notícias recentes animadoras como a de Jacinda Ardern, primeira ministra da Nova Zelândia, que para mitigar os impactos da pandemia, aumentou o salário mínimo e subiu os impostos sobre os mais ricos. A partir de comparações com dados do plano internacional, é possível verificar o quanto ainda estamos longe de um sistema tributário justo, onde quem tem mais paga mais. No Brasil, de forma resumida, o pobre paga mais imposto que o rico, pois se paga muito imposto sobre o consumo e não se tributa o patrimônio e a herança dos ricos, por exemplo.
As alíquotas máximas do Imposto de Renda das Pessoas Físicas permaneciam, em 2015, em níveis iguais ou superiores a 50% em muitos países como Bélgica, Holanda, Suécia, Dinamarca e Japão, já no Brasil a alíquota máxima era de 27,5%, bem inferior à própria média dos países da América Latina (31,5%). Quanto aos impostos que incidem sobre o patrimônio e a riqueza acumulada, no mesmo período, a arrecadação total dos países da OCDE foi de 39,5% em média, e a do Brasil foi de 25,4%. Sobre os impostos indiretos, os cobrados sobre o consumo foram de 49,6% no Brasil e 32% nos países da OCDE. Esses números demonstram um pouco das anomalias do nosso sistema.
Uma reforma tributária, ampla, que combata as anomalias do sistema vigente e que crie um sistema justo e progressivo de cobrança, é um dos instrumentos necessários para o desenvolvimento de nosso país. Mesmo organismos como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) compartilham, hoje, da visão de que a desigualdade é prejudicial ao crescimento dos países e que, por isso, precisa ser combatida. A promoção da distribuição de renda, com ampliação dos rendimentos das famílias e estímulo ao mercado interno e a sustentação do financiamento dos investimentos na infraestrutura econômica e social são motores do crescimento econômico que poderiam ser altamente impactados por uma reforma tributária e portanto ela deve ter papel central no debate nacional. Para Fagnani e Rossi, a justiça tributária é “ferramenta indispensável para aumentar o impacto distributivo da política fiscal, pois pode reduzir substancialmente as desigualdades sociais, transformar a estrutura produtiva e modificar a correlação de forças. Por isso, ela deve estar no centro de todos os projetos sociais de desenvolvimento.”
Em A Reforma Tributária Necessária (2018), o professor Eduardo Fagnani, do Instituto de Economia da Unicamp, assinala oito premissas para se pensar e debater a Reforma Tributária brasileira:
- A Reforma Tributária deve ser pensada na perspectiva do desenvolvimento econômico e social do País.
- A Reforma Tributária deve estar adequada ao propósito de fortalecer o Estado de Bem-estar Social, preservando e diversificando as fontes para o financiamento da proteção social, em função do seu potencial como instrumento de redução das desigualdades sociais e promotor do desenvolvimento nacional.
- A Reforma Tributária deve avançar no sentido de promover a sua progressividade pela ampliação da tributação direta, que incide sobre a renda e o patrimônio das camadas mais ricas da população.
- A Reforma Tributária deve avançar no sentido de promover a sua progressividade pela redução da participação da tributação indireta que incide sobre o consumo.
- A Reforma Tributária deve restabelecer as bases do equilíbrio federativo.
- A Reforma Tributária deve considerar a tributação ambiental.
- A Reforma Tributária deve aperfeiçoar e resgatar o papel da tributação sobre o comércio internacional como instrumento de política de desenvolvimento.
- A Reforma Tributária deve fomentar ações que resultem em aumento da arrecadação, pela revisão das renúncias fiscais e aperfeiçoamento dos instrumentos de combate à sonegação e evasão.
É no campo da luta política que podemos deslocar as forças dominantes e migrar de um debate sobre uma reforma tributária superficial, cujo objetivo é apenas simplificar a tributação, para um debate sobre estrutura e sistema, que impactaria diretamente o projeto de desenvolvimento de nosso país, que deve incluir a todos.
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