Algumas coisas parecem banais no nosso cotidiano, como as roupas que vestimos e os sapatos que calçamos. Elementos que seriam despossuídos de história ou problematizações.
Mas se olharmos com atenção, perceberemos que possuímos algumas peças favoritas no nosso armário, com certo valor emocional atribuído a elas. Também podemos nos atentar às fotografias de outras décadas, onde perceberemos a mudança nos estilos das vestimentas adotadas pelas pessoas.
Na infância, geralmente, fomos vestidos pelos nossos pais e familiares, eles escolhiam os conjuntos de sua preferência e nos produziam de formas muitas vezes “cafona”, para nossos olhos de hoje.
À medida que os anos foram passando, fomos conquistando certa autonomia e o direito de opinar. Alguns devem ter sido “rebeldes”, adotando conceitos que os familiares não digeriram bem. Outros podem ter continuado esperando os pais comprarem as vestes e seguindo o gosto deles. E tantos se encantaram com alguma marca, tornando seu produto um desejo de consumo.
As relações que estabelecemos com esses bens são típicas do momento que vivenciamos. A preferência por determinado estilo de sapato pode marcar nossa identidade, o grupo social que desejamos/ julgamos integrar, uma opção estética ou o que estava ao alcance do poderio financeiro.
Todavia, na história do Brasil, nem sempre foi assim. O uso de sapatos era restrito a uma camada da sociedade (lê-se: os senhores), enquanto o restante (lê-se: os escravizados) precisava se manter com os pés no chão. Gilberto Freyre aponta essa questão, através do livro “Sobrados e Mucambos”, observando os calçados como um elemento de distinção social:
Os pés negros deviam ser particularmente rebeldes aos sapatos e às botinas de molde europeu;[…] Quando a uso dos sapatos e das botinas – a princípio elegância quase somente de reinóis – generalizou-se entre a aristocracia brasileira de homens e mulheres de pé pequeno, compreende-se a dificuldade de pretos da África chamados boçais para se acomodarem, quando pajens, ou mucamas, a esse elemento aristocratizante e europeizante, tão contrário à configuração dos seus pés largos e chatos.
Gilberto Freyre situa que quanto menor o pé, e mais fino, mais aristocrata seria o sujeito. Daí surgiram algumas alcunhas: “pé de chumbo”; “calcanhares de frigideira”; “pés raspados” ou “pés de cabra”.
Nesse sentido, no Brasil oitocentista, o acesso aos calçados era um elemento de transição e desejo, marcador da conquista da alforria. Uma distinção desejada, entre aqueles que se tornavam livres.
Entender as problemáticas envolvidas em elementos tão cotidianos nos leva a pensar sobre a história do nosso país, marcada por um violento jogo de distinção social. Nos leva a entender o desconforto da elite ao ver pobres em aeroportos, acessando os mesmos bens de consumo ou dividindo a sala da universidade.
Antes ela negava acesso até os sapatos.
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