Em 2014, ao ingressar no curso de Licenciatura em História na Universidade Federal do Piauí, passei a ter contato com uma série de leituras que me saltaram os olhos. Eu estava chegando no estado do Piauí naquele período e quase tudo que lia a seu respeito era novidade. Contudo, já naquele momento uma carta me chamou a atenção.
Ela teria sido escrita no chamado “Piauí Colonial” e tornou-se pública através dos estudos do historiador Luiz Mott. Ao analisar esse documento, Mott destacara sua singularidade: ele foi escrito por uma mulher e endereçado ao Governador da Capitania.
Conforme o historiador, isso constituía algo raro no período estudado, apesar da quantidade proporcional entre homens e mulheres. Constatavam nos arquivos que os requerimentos, ofícios, petições, dentre outros documentos eram essencialmente assinados por homens.
Todavia, a especificidade desse documento não acabava aí. Ele foi escrito por uma escrava. Numa sociedade marcada por uma estrutura desigual, onde o domínio da escrita restringia-se à pequena parcela da população masculina abastada, essa mulher conseguiu dar um grito de resistência. Seu nome: Esperança Garcia.
Conforme os trabalhos dessa Comissão, o ato de Esperança Garcia representara um símbolo de resistência na luta pelo direito, possuindo os elementos jurídicos essenciais de uma petição: endereçamento, identificação, narrativa dos fatos, fundamento no direito e pedido.
Vejamos o documento ipis litteris, localizado por Luiz Mott. Sua datação consta em 06 de setembro de 1770:
“Eu sou hua escrava de V.S dadministração da Cap.am Antº Vieira de Couto, cazada. Desde que o Cap.am pª Lá foi administrar, q. me tirou da Fazdª dos algodois, onde vevia co meu marido, para ser cozinheira da sua caza, onde nella passo mto mal.
A primeira hé q. há grandes trovoadas de pancadas enhum Filho meu sendo huã criança que lhe fez estrair sangue pella boca, em min não poço explicar q Sou hu colcham de pancadas, tanto q cahy huã vez do Sobrado abacho peiada; por mezericordia de Ds escapei.
A segunta estou eu e mais minhas parceirar por confeçar a tres annos. E huã criança minha e duas mais por Batizar.
Pello ã Peço a V.S pelo amor de Ds. E do Seu Valimto ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar a Procurador que mande p. a Fazda aonde elle me tirou pa eu viver com meu marido e Batizar minha Filha
De V.Sa. sua escrava
Esperança garcia”
O acesso à carta traduzida para o português atual pode ser feito através do site Instituto Esperança Garcia, onde é possível localizar informações complementares acerca da luta pelo seu reconhecimento e o seu papel para a resistência.
Esperança Garcia, presente.
Referência. MOTT, Luiz. Piauí Colonial: população, economia e sociedade. Teresina: FUNDAC, 2010.
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