No período conhecido como Iluminismo, as correntes contrárias aos dogmas religiosos começaram a se expandir pelo mundo, gerando um distanciamento ainda maior entre o que era considerado como mundo real e o mundo espiritual. O imediatismo comercial e as demandas existências trouxeram a tona uma nova face da humanidade, o individualismo, que se tornou rapidamente uma crença gerada na percepção de que são os méritos que conquistam a paz e a felicidade.
Coisas naturais passaram a contar como mercadorias. Família, ok. Casa, ok. Carro, escola, faculdade, trabalho, tudo passa a ser quantificado exatamente como bens de consumo, logo, sou possuidor de bens e assim, feliz. Tudo estaria perfeito se não fosse um pequeno detalhe: e a paz? Se possuir tudo o que a sociedade moderna oferece como potencial pode trazer momentos de felicidade, por que a famigerada paz não se faz presente? Para refletir essa questão precisamos entender que não é a falta de uma religião específica que causou esse distanciamento, mas a perda da Fé.
Não. Não a falta de fé no transcendente, nem tão pouco a falta de fé em um Deus criador, mas a falta de fé em si mesmo. Lembre-se, se não acredito em mim, devido as minhas falhas e erros, como posso ter fé em uma sociedade repleta de “eus”? Nem se faz necessário comentar os dias atuais para alicerçar essa reflexão, mas com certeza não pode ser esquecido que essa “perda” deu inicio exatamente durante a industrialização. Homens viraram maquinas e a vida foi avaliada em números. Ou você é produtivo dentro dos padrões sociais, ou você é um pária, relativizando a eugenia como resposta natural evolutiva.
Parece pouco? Mas tem mais. Antes mesmo de você perceber, já vai acreditar que isso pode ser uma verdade, que apenas o empenho exterior é capaz de colocá-lo em uma alta esfera de seres que controlam a sociedade e por esse motivo, dignos da sobrevivência. Aos demais cabem postos inferiores até que nem sejam mais necessários, afinal as máquinas avançam o processo produtivo. Realmente fica difícil responder a pergunta de “quem é você”, sem enumerar seus bens e suas conquistas materiais sem entender a real questão colocada: “quem – é – VOCÊ?” Para ajudar na compreensão da pergunta, se não existissem diplomas, conta bancaria, bens de consumo e poder político, o que sobraria? É exatamente aí que reside a sua paz.
Claro que nesses termos fica mais fácil refletir em alguns motivos, mas o principal é a Fé. Quando deixamos nossos sonhos, desejos, amores, paixões e determinação em segundo plano, perde-se a fé em si mesmo, na capacidade de lutar contra o meio social e de impor sua existência natural e sagrada. Aqui as religiões deveriam saber dar sua contribuição. Religar o homem a si mesmo e consequentemente aos demais, pelo poder da fé em que ele é capaz dessa realização. A vida é o maior benefício que uma pessoa pode ter, e sendo assim, o tempo é o seu maior tesouro, sua única fonte de satisfação, mas apenas quando existe sintonia e liberdade. Ali é a fonte onde jorra a paz. Segundo Bauman:
“Há dois valores essenciais que são absolutamente indispensáveis para uma vida satisfatória, recompensadora e relativamente feliz. Um é segurança e o outro é a liberdade. Você não consegue ser feliz, você não consegue ter uma vida digna na ausência de um deles, certo? Segurança sem liberdade é escravidão e liberdade sem segurança é um completo caos, incapacidade de fazer nada, planejar nada, nem mesmo sonhar com isso. Então você precisa dos dois”.
A modernidade liquida perdeu a fé no todo porque perdeu a fé em si mesma, nos seus propósitos e resultados, esquecendo inclusive o caminho de volta. Teme perder a matéria ao mesmo tempo em que a perde no tempo, desejando que seus ideais prevaleçam mesmo com a morte do hospedeiro, ignorando virtudes e trocando a paz pela ilusão da segurança. Hoje ela ainda se debate numa longa contração interior para manter a chama do egocentrismo acesa, mas os ventos calmos dos novos tempos reaproximam as pessoas de si mesmas como o despertar de um longo e tenebroso sonho. Os olhos ainda não se acomodaram a claridade, mas é uma questão de tempo até que as sombras deem espaço à luz que passa pela pequenina gota d’orvalho.
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