Pensei muito antes de escrever essa crítica. Porque, sim, eu ainda penso muito sobre George Floyd e vários outros casos como o dele que acontecem todos os dias.
Como você se sentiria se, ao sair da sua casa para ir ao mercado, soubesse que iria morrer simplesmente por ser quem é? Se você ainda não refletiu sobre isso, veja Dois Estranhos. Você será atropelado por um caminhão a 200 por hora que nem verá chegando.
O curta da Netflix premiado com o Oscar acompanha o déjà vu agoniante de Carter James. O jovem preto passa a noite com Perri, que acabou de conhecer. Ao sair do prédio dela em Nova York para ir para casa, ele é abordado pelo policial branco Merk. Após um confronto nitidamente racial, James é morto pelo policial. O que aumenta ainda mais o desespero desse cenário é que, ao morrer, ele entra num looping temporal. James acorda novamente na cama de Perry e não importa qual caminho escolherá: o seu destino ao encontrar com o policial já está traçado.
As reflexões relacionadas à discriminação por si só trazem o devido peso para o roteiro, assim como nas obras de Spike Lee ou Jordan Peele. No entanto, a abordagem escolhida pelo co-diretor e roteirista Travon Free proporciona ainda mais relevância para entender a situação. Numa interessante semelhança com a temática de O Feitiço do Tempo, filme brilhante de 1993, os recursos temporais parecem dar mais dinâmica aos inevitáveis e repulsivos fatos do curta.
O comediante preto Travon Free tem lugar de fala e o seu posicionamento é cristalino. Ele se une a Martin Desmond Roe para jorrar revolta ao longo de 32 minutos de perplexidade e dura realidade.
“Eu não posso respirar”. Tremo enquanto escrevo essas palavras, ditas por George Floyd pouquíssimo tempo antes de morrer. Os diretores ilustram esse desespero fazendo uso de uma linguagem rica, com trilha e cortes frenéticos e violência visual mais do que justificada no contexto da trama. A intenção – inegavelmente alcançada – é sufocar.
A química entre Andrew Howard (vivendo mais um antagonista odioso em sua carreira) e o rapper Joey Badass colabora para esse contexto. As atuações refletem pessoas facilmente identificáveis no mundo em que vivemos, o que torna os fatos retratados ainda mais verossímeis
Veja Dois Estranhos. É um apelo que faço. O racismo estrutural é real e precisa ser discutido massivamente. Eu sou branco e, apesar de aderir muito à luta preta e buscar sempre me atualizar sobre as discussões em torno das questões raciais, sei que nunca vou poder falar por um preto. Nunca irei conseguir explicar o sentimento que um preto tem, e nem deveria tentar fazer isso. A intenção não é simplesmente ter empatia – é entender que o racismo é real e que ele definitivamente não pode ser ignorado.
Ao final, com um oportuno uso do clássico oitentista That’s Just The Way It Is, de Bruce Hornsby, fica a mensagem de que não deve haver indiferença. Porque, de fato, é assim que as coisas são – mas não devemos simplesmente acreditar (ou aceitar) isso.
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Crítica | Dois Estranhos
O jovem preto Carter James só quer ir para casa reencontrar o seu cachorro após uma noite com Perri. Mas no seu caminho ele encontrará o policial Merk num interminável confronto moral onde seu destino já está traçado.
PROS
- temática com choque de realidade
- Roteiro objetivo, conciso e avassalador
- Linguagem criativa com boas referências
- Atuações seguras que transmitem verossimilhança
Análise da Avaliação
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Roteiro
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Atuação
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Elenco
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Direção e Equipe
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Som e Trilha Sonora
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Figurino
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Cenários