Ao iniciarmos os estudos sobre as diversas formas de conceber a História poderemos perceber que este é um campo vasto e sinuoso, onde a opção por uma leitura implica, indiretamente, na exclusão de outros caminhos. Esse entendimento pode ser melhor compreendido através de uma interlocução com Italo Calvino, em seu livro Cidades Invisíveis, onde o literato narra a história de Marco.
Em determinado momento da trama o protagonista se encontra na praça de uma cidade, onde nota alguém que vive uma vida ou instante que poderiam ser seus. Marco poderia estar no lugar daquele sujeito se em algum momento tivesse tomado uma encruzilhada ao invés de outra, ou parado no espaço. Todavia, desse passado real ou hipotético ele está excluído. Os “futuros não realizados” são apenas ramos do passado: ramos secos.
A orientação em torno de uma ideia de História perpassa pelo reconhecimento de outras tantas possibilidades, situadas no tempo e no espaço. A historiografia ocidental, da qual somos assíduos leitores, costuma situar alguns marcadores desse campo do conhecimento: Narrativas Homéricas; Positivismo; Escola dos Annales; Marxismo; Micro-história; Nova História Cultural; História Decolonial; dentre outras.
Cada corrente de pensamento é permeada por especificidades que concernem às formas de interpretar os acontecimentos, sejam eles situados não curta, média ou longa duração. Todavia, François Hartog constatou que, durante séculos, o passado foi a categoria de referência, a categoria dominante.
Conforme seus escritos, a destacar Regimes de Historicidade, o primeiro movimento dos historiadores seria o de olhar para o passado, não para repeti-lo, mas para compreender o devir, situar seus precedentes, exemplos e referências, tendo em vista as ações a serem praticadas.
Hartog aponta que no “regime moderno” essa referência passou a ser o futuro, onde eram estabelecidos objetivos a serem atingidos e caminhos para consegui-los com a maior brevidade possível. Nesse sentido, a aceleração passou a ser um componente importante desse regime. O historiador chega a destacar a ideia de “planejamento” como palavra de ordem para alguns regimes políticos, onde o futuro era colocado no posto de comando a título de projeção, sobretudo nos anos 1970.
A decaída desse “voluntarismo planificador”, conforme Hartog, se deu ainda no final do século XX. Sua perda de terreno foi acelerada pela revolução da informática, onde acentuou-se a dimensão do “presentismo”. Essa percepção dialoga com os estudos do sociólogo Manuel Casttel, onde a emergência da Internet como um novo meio de comunicação é associada a ascensão de novos padrões de interação social, cujo principal marco seria a individualização.
Essa temática também é abordada nos escritos do sociólogo Zygmunt Bauman, onde a discussão a respeito da “identidade” é colocada em pauta, tendo em vista uma sociedade líquido-moderna, onde o sujeito livremente flutuante, desimpedido, é o herói popular, “estar fixo” – ser “identificado” de modo inflexível e sem alternativa – é algo cada vez mais malvisto.
Nesse sentido, o presentismo seria pautado por uma premissa que não via nada além de si mesmo. Hartog pontua que se passou então a fabricar, a cada dia, o passado e o presente de que se tem necessidade. As mídias teriam sido um fator preponderante, colocando em primeiro plano o instante o simultâneo. Todavia, o historiador pontua sobre a importância de não ceder à ideia de que agora em diante, só a história contemporânea seria história; pois os outros períodos da história correriam o risco de serem divididos entre curiosidades e sobrevivência.
Conscientes disso, ao penetrarmos nos estudos acerca da contemporaneidade, nos deparamos com alguns conceitos centrais que nos ajudam a entender suas nuances, dentre os quais podemos destacar os de “Presente Amplo” e de “Presença”, do historiador Hans Ulrich Grumbrecht. Seus escritos transitam entre as áreas da filosofia, estética e epistemologia, permitindo reflexões entre o poder do dito e do não-dito. Hans observa a constante da interpretação do texto como um ato que compensa as deficiências da expressão.
O historiador propõe uma distinção entre o sujeito que produz um texto e alguém que escuta ou lê esse texto. A partir disso aponta que um escrito “sendo o que é” permite várias leituras, guiadas pela subjetividade do leitor. Ao passo que o escritor é consciente da incapacidade de articular em códigos tudo aquilo que se passa na sua mente. Nesse sentido, a interpretação acrescentaria profundidade aos textos.
Ao ponto levantado por Grumbrecht podemos acrescentar algumas considerações do historiador Roger Chartier, que observa um universo a ser explorado entre a mão do autor e a mente do editor, naquilo que diz respeito a materialidade do texto. Chartier situa que a “mesma” obra não é de fato a mesma quando muda sua linguagem, seu texto ou sua pontuação.Nesse sentido, o historiador destaca a ação de tradutores, revisores, compositores ou tipógrafos, copistas e censores, considerando-os como grupos que podem interferir numa produção.
Sendo assim, ao nos dedicarmos ao estudo da História precisamos estar conscientes da ampla trama que envolve a produção do conhecimento, só assim poderemos ter consciência do pouco que temos a partir da noção do muito que não possuímos.
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