Salomão Sousa é escritor, ensaísta e, sobretudo, poeta. Nasceu na zona Rural de Silvânia (GO) e reside em Brasília desde 1971. Diz escrever desde os tempos medievais do rio Calvo, tendo passado por poesia telúrica à marginal, chegando até experiências das invenções das pós-vanguardas.
I) Entrevista
Conversei com o poeta sobre sua vida e obra:
O que a literatura significa para você?
Podemos avaliar a importância da literatura levando em consideração diversos aspectos. Quando comecei a ler, na juventude, a literatura era companhia para enfrentamento da solidão. Depois eu viria a compreender que era muito mais do que companhia para a solidão. Já naquela época, eu nem compreendia que a literatura sobrepunha realidades atrativas sobre àquele mínimo território em que eu vivia, de zona rural, de uma pequena cidade com poucas atrações. Eu ampliava a minha vida com a compreensão das pessoas e de seus problemas cotidianos, de seus entraves sociais e de suas fobias através dos personagens dos romances e das poesias. À medida que fui compreendendo a importância dos diversos segmentos da Cultura, a literatura mostrou o seu significado universal: ela contribui para a formação do caráter de uma nacionalidade e a resistência de uma língua para sobreviver. Parece que um escritor escreve para ele mesmo, em sua solidão de autopreservação diante da morte, mas depois isto se torna um gesto social, de iluminação de uma localidade, de afirmação de uma nacionalidade.
Você sabe dizer o porquê de escrever?
Não precisamos escrever para nos vangloriamos de ser grandes, para apregoarmos que somos fortes ou valentes sobre os demais. Não escrevemos para sermos exemplares. Sempre que um autor envereda por esse caminho de ufanismo do “eu” e de gritante egocentrismo estará fadado a ser absorvido pela nave do esquecimento, essa nau imperdoável que nunca retorna ao porto. Escrevemos para organizar novos arranjos para as palavras, onde surgem novos significados, novas relações sociais, onde os indivíduos, as comunidades e mesmo as nacionalidades passam a se conhecer e a se respeitarem. Escrevemos para descobrirmos expressões que nem sabíamos existir, não sabíamos que habitavam em nós. Escrevemos para nos surpreender com a organização daquilo que vivemos e imaginamos. Escrevemos para expressar nossas realidades paralelas, pois a realidade em que transitamos é insuficiente para atender aos chamados de nossos desejos. Sempre pensamos que nos realizaríamos melhor em outra realidade, pois sempre julgamos insuficientes os espaços que se põem a nossa frente. Escrevemos para construir a linguagem de realidades imaginárias, e nelas transitarmos carregados de emoção.
Sua obra é rica em referências a artistas e intelectuais…
É possível dizer quem são suas maiores influências?
Tive sorte de ler poetas brasileiros logo cedo, tanto de escolas antigas quanto modernos. Na juventude pude ler Castro Alves, Alphonsus de Guimarães, Álvares de Azevedo, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Cassiano Ricardo. Ao longo da vida fui acrescentando Jorge de Lima, Rilke, Victor Sosa e tantos outros. Este último me abriu os horizontes para as possibilidades do neobarroco, que tem me auxiliado muito na nova fase de minha poesia. Inescapáveis as presenças de Dante e Fernando Pessoa.
Um de seus ensaios, Exaustão de Existir, especialmente me tocou por ler que qual sua sobrevivência deve-se à palavra. No tópico Discursos Fascistas, você escreve que devemos manter-nos atentos, sensíveis e acolhedores.
Dado o exposto, você pode falar sobre a potência transformadora da palavra? Como a literatura pode contribuir para a resistência que você descreveu?
Defendo os princípios democráticos e venho preocupado com as consequências do enclausuramento dos indivíduos, que prejudica as relações sociais e auxilia ímpetos fascistas nos indivíduos. A literatura em si mesma pouco pode contribuir para socialização. Indivíduos com grande carga de leitura e de produção de material de leitura têm manifestado índole antissocial, com defesa de ações que regimes fascistas praticaram no passado (basta ver a defesa da ação de snipers nas comunidades, com mortes cotidianas, basta ver a defesa de ações marcadamente ligadas à necropolítica). A leitura contribui para compreensão da história, do real, mas tem de vir acompanhado de outras re/evoluções. Edgar Morin, que comemora agora 100 anos de vida, concedeu entrevista em que condena estes movimentos neototalitários, e diz que sem autocrítica os indivíduos não reverterão este processo. A palavra, sozinha, não ajusta os desequilíbrios sociais. A palavra produz razão, mas os indivíduos, mesmo sabendo (tendo certeza) que suas atitudes se afastam da razoabilidade, insistem em cavar o poço que poderá absorver todos nós, num grande desastre histórico. O mundo já viveu nos meados do Século XX esse poço de desastre que vai sendo construído (com o nazismo, com o fascismo, com o stalinismo). Qualquer governante que colocar um ismo no seu nome legará para a história futura o seu nome num neologismo totalitário, de símbolo de desastre. As palavras servem para esses registros históricos, nos quais reconhecemos as ações do Homem, sejam eles de construção de Civilização ou de demolição do Humanismo.
Quanto à sua poesia… Qual é sua lembrança mais antiga relacionada a ela?
Fui alfabetizado com uns dez anos. Meu avô tinha uma canastra que abrigava meia dúzia de livros de cordel. Naquela zona rural não tinha outro material de leitura, só aqueles livretos. Me vejo sempre sentado numa banqueta da cozinha da casa de meus avôs, naquela cozinha enegrecida pela fumaça da fornalha a lenha, à luz de lamparina, lendo aquelas aventuras para meus familiares e trabalhadores da fazenda. Quando eu errava a leitura de alguma palavra o meu avô me auxiliava a pronunciá-la corretamente. Entrei na literatura pela porta da poesia de cordel.
É possível estimar quantos poemas você já criou?
Como já publiquei 11 livros individuais e tenho três inéditos, cada um contendo uns sessenta poemas, avalio que devo ter escrito mais ou menos 800 poemas. Amanhã, esse número poderá aumentar para 801 e, assim, sucessivamente.
Como é seu processo criativo hoje?
Meu processo criativo não obedece com rigidez nenhum sistema programático. Escrevi muitos poemas no transporte público, anotei muitos poemas em noites de insônia, e muitos em momentos de repouso. Dois fatos são importantes. Manter-se em movimento para que as ideias também se movimentem e instiguem a nossa mente para a escritura. Em seguida, tem o trabalho de burilamento. Depois de escrito o rascunho, um poema pode levar anos até ganhar a versão final.
Você viu seu estilo mudar com o tempo?
Minha poesia passou por três momentos. A primeira fase, que vai até meados dos anos 1980, era uma poesia ligada à terra, com alguma metafísica questionadora da vida. Depois ela foi afetada pela poesia marginal, com uma mistura de vanguardas, que, aparentemente, se confundem. Essa fase intermediária serviu para chegar a uma poesia mais fragmentária, neobarroca, com auxílio de um poema de Helena Parente Cunha e da poesia de Jorge de Lima e do uruguaio Victor Sosa, e em razão de meu contato com o jazz e com o mundo líquido, que se altera a todo momento. Senti a necessidade de quebrar as frases, mudar o nome da realidade. Meus últimos livros são construídos tendo em mente essa consciência da fragmentação da realidade e das relações sociais irrelevantes, inúteis.
E a cena poesia, mudou? Como prevê que ela estará no futuro não-tão-próximo?
É natural a mudança, pois “o que não muda/é a vontade de mudar”, conforme os versos inigualáveis de Charles Olson. A linguagem da poesia está sendo afetada pela instantaneidade das redes sociais. Ainda tenho dificuldade para apreendê-la, pois traz muita validação do “você” e do “eu”, com perda do contato da realidade, sobretudo pelo afastamento da natureza. E a poesia tem uma necessidade enorme da natureza para construção das metáforas. Possivelmente, a poesia mude mais rápido do que possamos pensar. No mundo da instantaneidade, tudo muda de um dia para o outro. Quem pensaria que a vacina contra o Covid-19 seria obtida em um ano? A mudança passou a acontecer a todo momento. E sabemos que o poeta não pode repetir fórmulas, senão não será autêntico, ele mesmo.
Enfim, vamos a trocas rápidas?
Um livro: As Elegias de Duino, de Rainer Maria Rilke
Um poema: Ítaca, de Konstantinos Kavafis
Um excerto: Do poeta T. S. Eliot:
Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Um filme: O Cavalo de Turim, de Béla Tarr
Um recado aos leitores e escritores neste momento difícil:
Não entre em conluio com mentiras para não ser cúmplice de neototalitários. Defenda o ordenamento jurídico que garanta o homem ter trânsito livre. A leitura é um gesto isolado, que traz o mundo para dentro de nós, enquanto nos refugiamos de nossos inimigos. Se tiver de lutar, defenda uma boa causa, com um bom verso, com um bom diálogo. Ficarmos calados é permitirmos que o inimigo imponha seu discurso. Produza com legitimidade, sem afeição a formas desumanas. Manifeste seu lado político: defenda uma ambiência favorável à liberdade. Lembrar sempre que o escritor, num regime de perda de direitos, é o primeiro a perder a liberdade: a liberdade de expressão.
II) Seleção
Recortei alguns de seus poemas, que sustentam cada uma de suas interpretações:
Intervalo para o Vento
– Cascos e Caminhos, p. 99
Até o tempo é uma mercadoria
que vem junto com o pacote de viagem.
Se não temos o interesse de uma semente
a chuva traz prejuízo sem desgaste.
Mas também se somos ácaro
melhor para sobreviver é a borrasca.
Pouco me importa qualquer céu,
de nublagem, cântaros, sol forasteiro.
Dentro de mim é somente o húmus
que quer ser alimentado por qualquer vento
que se apresente à minha porta.
Talvez eu me sinta uma semente
rejuvenescida com a fúria do vento molhado
e me enfureça diante do sol
eu nasça revestido de ácaro.
nenhuma árvore
– Desmanche I, p. 137
Pede a opinião da luz
e estarás iluminado.
não contemos com a filha de Zeus
– Desmanche I, p. 113
É muito mais que a morte de uma mariposa
que seduzida encaminhou-se para a luz
O luto é muito maior do que o vazio
do que posso das mãos suspeitas
do que a pele escurecida no eletrochoque
Nas mortes diárias/nos assaltos
homens executam o trabalho
A ausência do discurso/a ausência
dos dizeres de uma criança na lousa
Reivindicamos e este luto é o maior
A poesia às vezes exige o lençol das palavras
e no pátio lhe resta ser desconjuntado grito
III) Bibliografia
A moenda dos dias, 1979, DF A moenda dos dias/O susto de viver, Ed. Civilização Brasileira 1980; Falo, 1986, DF; Criação de lodo, 1993, DF; Caderno de desapontamentos, 1994, DF; Estoque de relâmpagos, Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária, 2002, DF; Ruínas ao sol, Prêmio Goyaz de Poesia, Ed. 7Letras, 2006; Safra quebrada, FAC, 2007; Momento Crítico, de textos críticos, 2008; Vagem de vidro, 2013; Descolagem, 2016; Desmanche I, 2018; e Poética e andorinhas (textos híbridos (2018). Tem inéditos os livros Desmanche II, Desmanche III, Biografia (poemas) e Vai explodir (poemas infantis). Mantém o blog http://www.safraquebrada.blogspot.com/
** É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita. O Jornal 140 não se responsabiliza pela opinião dos autores deste coletivo.