Quando o mundo era um século mais jovem, as equações de valores remanescentes do século XIX estavam em plena crise. A década de 1920 foi marcada por desconfigurações sociais que fizeram esse extrato temporal ser conhecido como “Anos Loucos”. Perante a falência de paradigmas humanistas, a 1ª Grande Guerra e pandemias como a da gripe espanhola, o hedonismo e uma certa filosofia da destruição passaram a fazer parte do “espírito da época”.
O historiador Nicolau Sevcenko avaliou os começos e desdobramentos dessa crise ontológica que afetou as subjetividades e a política. Esse esgotamento da chamada belle époque deixou as sociedades humanas órfãs de modelos organizacionais, culminando com o desmoronamento das democracias liberais em diversos lugares do mundo. Vertentes autoritárias do exercício do poder assumiram o comando de diversos Estados-Nação.
Palavras como “Nazismo”, “Fascismo”, “Guerra Total”, “Barbárie” e “Genocídio” se tornaram testemunhas que informam sobre o século passado. A rachadura é mensurável na medida em que esses conceitos se tornaram chaves essenciais para alguma compreensão sobre quase todo o restante do “breve século XX”. Quando a humanidade se viu em face de um horizonte turvo, passou a se aperfeiçoar em formas de controle ou de extermínio.
A razão humana não tem sido favorável ao que não pode classificar, nomear; a dessintonia lhe é intolerável. Modos de subjetivação reacionárias e/ou autoritárias costumam emergir em momentos de crise, propondo iluminar o horizonte em troca de tipos de servidão. A imaginação de um outro mundo possível muitas vezes é ofuscada por retornos a tradições que insistem em voltar os seus holofotes que mais atordoam do que esclarecem.
É válido discutir a hipótese de que o mundo nunca se recuperou dos gigantescos massacres do passado, cujos destroços são os alicerces sobre os quais fincamos as colunas do que somos hoje. A década de 2020 iniciou com a eclosão de uma pandemia, potencializada por más gestões e um bombardeio de desinformação. No Brasil em particular, em meio a quinhentos mil cadáveres, um culto macabro ao poder festeja o genocídio.
O caráter contingencial da história humana não permite oráculos de grande exatidão. Não é possível estabelecer mecanicamente uma teleologia entre o século passado e o que estamos, mas é possível inferir que, em seus turnos, ambos racharam as suas vértebras. Quem habitou ou habita o tempo, viu-se em face a uma intensa neblina. No afã de organizar a realidade, o futuro frequentemente tem sido costurado de tal forma que pareça o passado.
Sevcenko indica um clímax muito significativo daquilo que seria o embaçamento da perspectiva característico de conjunturas angustiantes como a que vivemos:
E eis-nos de volta a noite. Não a noite heroica e bela. Nem a noite da tragédia também. Nem mesmo a noite da metafísica ou dos rituais com tochas e fachos de holofotes. Apenas uma noite qualquer, longa e exasperante, em que um tuberculoso insone, isolado no alto de um morro, sentia crescer a angústia da solidão. Ou quase solidão.
O vislumbre escatológico que esse trecho pode sugerir não é um futuro distópico ao qual estaríamos fadados. É mais uma tentativa de chamado a reflexão mais detida sobre alternativas históricas que privilegiam a criação e imaginação em detrimento de tradição e organização compulsória através de velhas formas enrijecidas, tantas vezes autoritárias e cruéis.
Referências:
HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções: Europa 1789-1848. Tradução de Maria Teresa Lopes Teixeira e Marcos Penchel. 4ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: companhia das letras, 1992.
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