Nenhuma surpresa do desastre anunciado do incêndio de destruiu um dos depósitos da Cinemateca Brasileira, que fica no bairro da Vila Leopoldina, em São Paulo, região que hoje abriga várias produtoras de cinema e comerciais, estúdios de produção como a Quanta entre outros. O motivo da não surpresa é que era mais do que previsível que lidar com celuloides de filmes originais, que são altamente instáveis, num local que não era apropriado para sua acomodação, causasse o incêndio. Era uma bomba-relógio, mas que ninguém queria desarmar.
Ninguém gosta de preservar a memória. Acham que isso é um fardo já que o que passou, passou. Esse pensamento simplista é o que levou um grupo de terroristas a botar fogo numa estátua de um representante da história do país. Podem dizer o que quiser, que ele era assassino e estuprador, mas o fato, e não dá para apagar isso, ele foi um dos responsáveis por criar a nação brasileira, junto com outros bandeirantes “assassinos e estupradores”. E todo esse clima de idiotice seria menor se as pessoas que atearam fogo, lessem algumas simples páginas dos livros de história sobre o bandeirantismo.
O mesmo pensamento nos leva a ver o que os acervos históricos brasileiros estão sofrendo. O Museu de História do Rio de Janeiro, virou fumaça anos depois de um relatório informando que as instalações elétricas eram um grande risco. Mas o governo carioca, que esbanjava dinheiro em jantares em Paris, nada fizeram. Em 2016, o depósito da Cinemateca já havia sofrido um incêndio. E depois, uma inundação, típica daquela região da cidade. Dois avisos premonitórios e nada de prevenir. Quanto custa salvar a memória de um país?
E não adianta levantar a bandeira de que a culpa é do atual governo federal. Já li comentários dizendo que a responsabilidade é sempre de quem está no comando, assumindo todos os erros do passado. Uma forma de, mais uma vez, usar o bordão “É culpa do Bolsonaro”, já que ninguém olha para o passado e ver que o erro estava lá, especialmente quando se vê os números de todo o dinheiro apurado em atos de corrupção dos governos passados.
É claro que esse dinheiro desviado de suas reais funções como educação, saúde e segurança, foram canalizados para outras parcerias como financiar filmes que não tem público ou produções com interesses nada culturais. Alguém aí sabe que Lula – O Filho do Brasil, produzido pela Família Barreto, foi o longa metragem mais caro já produzido no país, custando cerca de 17 milhões de reais, com pouco mais de 750 mil ingressos vendidos em 3 meses de exibição nos cinemas brasileiros. Já o filme Se eu Fosse Você 2, ganhou 6 milhões de reais para ser feito e levou mais de 2 milhões e meio de pessoas para se divertir no cinema.
O fato é que o culpado não é o governo ou governos do passado. A culpa é da maioria silenciosa que está triste com o que aconteceu, mesmo não indo muito ao cinema, mas sentindo a perda depois da catástrofe. O sonho ideal seria agora, um grupo de empresários iniciarem uma campanha para a recuperação do que sobrou da Cinemateca, nos mesmos moldes daqueles que salvaram Notre Dame, depois do incêndio que devastou a catedral em 2019.
Isso sim, tirar do governo a responsabilidade de tomar conta da nossa memória audiovisual e passar para a iniciativa privada. Existem hoje, vários museus que cuidam da história da televisão como o de Nova York, Melbourne, Texas, Vancouver, Chicago, entre outros. Eles preservam programas, filmes, séries e outros conteúdos exibidos no passado, através de doações privadas e de cobrar ingressos para que o visitante possa acessar esses conteúdos e conhecer essas preciosidades do passado.
É uma iniciativa louvável e importante para quem acredita na preservação da memória. Mesmo na Era do Youtube, onde você encontra vídeos e imagens de programas que hoje são uma vaga lembrança, essas entidades sistematizam a criação dos acervos. O documentarista David Naylor, que trabalho anos na BBC, afirmou que o futuro dos acervos das emissoras de TV está na internet, em canais como o Youtube ou mesmo site especializados em armazenar esse conteúdo. Ele não acredita que as emissoras tenham interesse na preservação de sua própria história porque isso demandaria um investimento considerável na digitalização de seus acervos.
Na história da TV brasileira sempre foi mais fácil apagar o passado do que preservá-lo. É de conhecimento geral que um executivo da extinta TV Tupi mandou apagar várias fitas magnéticas contendo jogos de futebol para reutilizá-las. Os incêndios que destruíram acervos da Globo no Rio, da Bandeirantes, da Record e da extinta TV Excelsior, tiraram importantes programas e registros que hoje só são encontrados em arquivos de jornais. Esses acervos foram perdidos para sempre, como diria o replicante Roy Batty em Blade Runner – O Caçador de Androides, “lágrimas na chuva”.
É triste saber que tudo acontece num momento que, mais do que nunca, o brasileiro precisa ficar atento nas tentativas que tem sido feita de se apagar o passado. Não adianta apontar o dedo para o governo federal acusando de desleixo com a coisa pública, naquela retórica questionável de quem já se beneficiou muito com a coisa pública. O exemplo já foi dado nos parágrafos acima. O governo não tem que ser ama de leite de quem quer fazer cinema, teatro ou televisão. Se o criador não acredita que sua criação será apreciada pela população, não gaste o dinheiro desse mesmo povo com produções feitas para agradar seu próprio umbigo e o umbigo dos amigos. A Embrafilme faz parte da história.
Se pessoas de bom senso olhassem para esses acervos como um bom negócio, muita coisa poderia ser feita para preservar a memória audiovisual brasileira. Quando você visita o Paley Center of Media (antigo Museu de Broadcast de NY), você compra o ingresso (10 dolares) e tem acesso a 150 mil horas de programas de tv e radio, além de várias salas interativas mostrando programas de sucesso da atualidade. E aqui? Lembro tristemente de um período em que a TV Cultura, que passava por mais uma crise financeira, vendia episódios de Vila Sésamo para quem quisesse ter um pouco de um dos mais importantes programas infantis e educacionais já vistos na TV brasileira.
E tem mais: quem vai cuidar dos acervos da Rede Manchete e o que sobrou da rede Tupi? No ano passado, a Televisão Brasileira completou 70 anos de vida e o máximo que alguém lembrou a exposição de 50 anos da Globo feito no Ibirapuera. Não sei se é importante lembrar ao Leitor, que a história da TV no Brasil inclui a Globo e não ao contrário. O fato dela dominar a audiência com sua programação não significa que ela manda no jeito do brasileiro assistir tv. Isso foi antes da invenção da TV por Assinatura, das redes sociais e dos canais streamings.
O ocorrido na Cinemateca é só mais um indício de que as coisas têm que mudar. E mudar para melhor, no sentido de preservar as poucas lembranças que temos dos filmes e programas que fizeram a diferença em nossas vidas. É hora de fazer a diferença para que no futuro, o passado seja apenas uma mancha triste e desbotada da nossa História.
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