O documentário argentino Tierra Adentro conta a história do genocídio do povo Mapuche, que ocorreu na Argentina e Chile durante a segunda metade do século XIX. Esse acontecimento, nomeado de “a conquista do deserto”, tem relação com uma ideia reiterada de “raça argentina” que se pretendia forjar no país. O filme demonstra que a construção de uma memória nacional argentina nos dias de hoje está ancorada no que chama de “construção de invisíveis” e massacre sistemático de populações nativas.
Como é perceptível nas falas do historiador Walter Del Rio – personagem de Tierra Adentro –, a narrativa de esquecimento e negação construída durante o século XIX ressoa na História que é ensinada na educação regular da Argentina. Segundo o historiador, chamando atenção para os monumentos e símbolos nacionais, essa falsificação da História deve ser desmontada.
Retóricas de raça, noções preconceituosas de determinismos geográficos, justificativas de salvacionismo entre outros elementos, foram usados como subterfúgios para justificar a dizimação dos corpos dos subalternos indesejáveis, completando com o sufocamento da memória e manipulação das narrativas oficiais. O caso dos Mapuche demonstra que as memórias não podem ser destruídas facilmente – é o que nos diz a inscrição da palavra “genocida” em língua Mapuche na base da estátua de um militar que integrou a “conquista do deserto”.
Faço um corte para outro país latino-americano, o Brasil. Aqui, monumentos e nomes de avenidas são dedicados à memória dos bandeirantes paulistas. Algumas vezes, se enuncia um contradiscurso à apologia feita a essas figuras. No dia 24 de julho de 2021, a estátua de um destes sujeitos ardeu em chamas em São Paulo. De maneira análoga aos colonizadores argentinos, esses personagens da história brasileira provocaram violência entre as populações nativas que buscavam sobreviver em seus territórios e, apesar ou por causa disso, tornaram-se mitos que atingem a atualidade. Aí, situa-se uma disputa de narrativas semelhante ao caso argentino, retratado no documentário supramencionado.
Busca-se a fundação de um ethos que retire a vilania dos personagens que penetraram o Brasil colonial e ficaram conhecidos como sertanistas; o argumento de que essas figuras entraram em territórios tidos como inóspitos é uma das camadas pretendidas pela forja de uma proto-história do bandeirantismo. Para que personagens se tornem símbolos numa longa duração, carece-se de elementos de coesão e justificação de atitudes que permitam a contemporização e construção de empatia.
Borba Gato, cuja efígie incendiada moveu um acirrado debate público, se encaixa nos moldes de personagens encantatórios a partir dos quais se constroem usos do passado específicos e nada inocentes. Um exemplo referido pelo historiador Eric J. Hobsbawm são as narrativas míticas construídas ao redor do Caubói estadunidense, que através de mídias diversas, terminou por se tornar também um símbolo de ideais caros a nacionalidades inteiras. Nas palavras do historiador inglês, tratam-se de “mitos semibárbaros machos e heroicos de um tipo ou de outro em seus próprios países e às vezes mais além”.
Marilena Chauí situou esses personagens tão festejados na contemporaneidade como figuras que “[…] entram em cena […] como palavras encantatórias que permitem a aplicação de esquemas europeus sem que nos envergonhemos deles”. Os partidários dessa imitação parecem ter se queimado junto com a estátua e se apressaram para criminalizar o ato, sob a nomenclatura de “vandalismo”. Outros, preferem a definição de “protesto”. É possível que, nesse caso, o fogo não tenha efetivamente destruído histórias, mas contribuído para reescrevê-las de um outro ponto de vista. Afinal, como essas figuras fantasmagóricas se sustentam em certo imaginário coletivo a ponto de serem consideradas heróis nacionais? A quais interesses servem?
Referências:
CHAUI, Marilena; ROCHA, André (Org.). Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 36-37.
HOBSBAWM, Eric J. O Caubói americano: um mito internacional? In: ___________. Tempos fraturados: Cultura e sociedade no século XX. Tradução Berilo Vargas. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 313.
LA ORDEN, Ulises de. (Dir). Tierra Adentro. 2010.
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