Rafael Nollia é professor, escritor e autor de “Elefante” (poemas) e “Gertrude Sabe Tudo” (infantojuvenil).
Conversamos sobre sua vida e obra!
– Você leciona geografia…é possível dizer que livros literários podem complementar um estudo geográfico? Ou, ainda, dizer que esses contêm saberes da área?
Minha primeira formação foi em Letras, pois alimentava o sonho de me tornar professor de literatura. Porém, a vida escolar foi me levando para a Geografia. Dessa forma, acabei me apaixonando pela área e fui atrás dessa graduação. Embarquei nessa segunda graduação pensando nisso: encontrar os caminhos onde a literatura e a geografia se conectam. Esse, inclusive, foi o tema do meu trabalho de conclusão do curso! Então, sim, com certeza os livros literários podem – e devem – complementar um estudo geográfico. E vou mais além: os livros geográficos podem – e devem – complementar os estudos literários.
O que pode citar como exemplo?
Posso citar dois casos interessantes e um tanto óbvios: Os Sertões, do Euclides da Cunha, apresenta longas descrições da geografia sertaneja, que são, ainda hoje, muito atuais. Algo semelhante se pode dizer de toda a geografia apresentada em Vidas Secas, sobretudo em relação a dinâmica climática e a vegetação da caatinga. Dessa forma, poderíamos recorrer a Cobra Norato, para entendermos melhor a geografia amazônica; buscar em Um Certo Capitão Rodrigo um aprofundamento em relação aos pampas. Claro, o principal nessa questão é compreender que a geografia não se limita, de forma alguma, a descrições de paisagens e aos assuntos ligados ao espaço físico (clima, vegetação, relevo). O mais importante, com certeza, é termos sempre em mente que a geografia estuda, na verdade, a forma em que o homem modifica o espaço geográfico. Mais ainda, o papel da geografia é compreender como o homem utiliza de técnicas e de tecnologias para transformar o mundo (aqui, recorro ao Milton Santos). Uma obra fantástica onde literatura e geografia se encontram (urbanização, migração etc): Quarto do Despejo, da Carolina Maria de Jesus… Os exemplos são intermináveis! O mais importante, a meu ver: a geografia não deve ser usada, apenas, como uma forma de melhorar o entendimento do espaço físico onde as obras em questão se desenvolvem. Todas as obras citadas são ricas em apresentar a relação do homem com o espaço, seus conflitos (geopolíticas) e os seus artifícios para ocupar, dominar e utilizar o meio em que vive. Ou seja, a literatura servindo como um veículo onde se pode aprender muito sobre geografia; a geografia servindo para melhorar a compreensão, a beleza, a profundidade, etc, de uma obra literária. É uma mão de via dupla.
– Quanto ao seu escrever…Você sabe dizer o porquê de fazê-lo? O que te inspira?
Para mim, tanto a escrita quanto a inspiração estão ligadas em um processo longo e contínuo. Nada daquela aura romântica da inspiração caindo do céu, em cascatas! Explico melhor: desde sempre gosto de ler. Sinto vontade de ter um livro comigo. Quando não estou lendo nada, a sensação é de que algo está faltando. A mesma sensação se dá com a escrita: preciso estar escrevendo e isso se dá desde a adolescência (escrever e ler: ações que se misturam, se complementam, se alimentam). Da mesma forma que fui, ao longo da infância e da adolescência, me tornando um leitor, fui, também, me tornando um escritor. Nesse processo de ir se envolvendo com a leitura e com a escrita, cheguei nesse ponto em que me encontro hoje: o ato de escrever e de ler é algo natural, tanto quanto o ato de ver TV, navegar na Internet, ou algo do tipo. Importante ressaltar que isso não é uma fórmula. Digo isso para não parecer que é assim que os leitores e os escritores se formam. Na verdade, existem diversos outros caminhos! Sobre a inspiração, aquela máxima, já terrivelmente batida, me parece muito verdadeira: a vida de escritor é 100% inspiração e 100% transpiração.
– Entendo que seu poema-livro, Isca, referindo-se à criação, foi criado. Como foi seu processo e sua transformação em audiovisual?
Esse poema-livro foi amadurecendo aos poucos em minha cabeça, ao longo de um bom tempo. Dessa forma, acredito que muitas coisas foram sendo incorporadas ao texto, mesmo que eu não me desse conta. Tinha em mente, a priori, o desejo de fazer um longo poema, que fosse caudaloso, tomando o livro todo e que versasse sobre o processo de criação. As influências diretas e mais explícitas (todos esses são livros de cabeceira): Poema Sujo, do Gullar; Paterson, do William Carlos Willians; Romanceiro da Inconfidência, da Cecília Meireles; Ode à minha Perna Esquerda, do José Paulo Paes; Os Cantos, do Ezra Pound; Terra Devastada, do T. S. Eliot; Morte e Vida Severina, do João Cabral de Melo Neto.
Diante disso, e com tantas referências, decidi construir um texto focado no papel do leitor nesse processo. Tendo isso em mente, percebi que um poema desse tipo, em um tempo como o nosso, só seria possível se esse poema fosse uma armadilha, cheia de gatilhos, de pistas, para ir convencendo o leitor a ler um pouco mais. Quase usei a palavra plot twist nessa frase, mas, me contive. O Isca é isso: um poema que fala sobre o ato de escrever poesia, mas que tem como intenção colocar o leitor na roda, dá-lo a impressão de que aquilo tudo só nasceu e se desenvolve por causa dele; a proposta é criar a impressão que o leitor, ao ler o texto, vai criando o mesmo.
Ao longo da maturação do poema fui guardando inícios de livros que me marcaram. Desse modo, uso o começo de diversos livros ao longo do meu livro, criando uma colcha de retalhos de citações, plágios, homenagens e colagens. Tem um pouco dos cut ups do Burroughs, nesse processo, com certeza.
A feitura foi bem simples, pois passei um bom tempo matutando o poema. Quando me sentei para escrevê-lo já tinha a espinha dorsal pronta. Depois disso, visitei e revisitei o arquivo ao longo de um ano, acrescendo trechos, eliminando outros, fazendo pequenos reparos.
Isca acabou saindo em formato e-book e distribuído gratuitamente nas redes sociais. Depois de todo processo concluído, senti a necessidade de dar mais uma sobrevida ao livro. Vivemos uma modernidade líquida, como diria Zygmunt Bauman: um livro que nos rouba mais de um ano de trabalho é consumido em um piscar de olhos; um livro que veio a luz depois de alguns anos de maturação, escrita e demais trâmites, circula rapidamente entre os círculos especializados (o leitor de poemas, esse ser raro) e depois some, como água entre os dedos. Para tentar trazer a obra à tona mais uma vez, transformei o Isca em uma experiência audiovisual, mesclando audiolivro com animação (de forma simples, com poucos recursos, visando valorizar o texto, a sonoridade das palavras e dar ênfase nos pequenos detalhes): essa experiência foi publicada no Youtube, onde fisgou mais algumas centenas de leitores.
– Você escreve para crianças…Pode contar do livro que está a caminho? Na sua visão, qual a importância de conhecer a literatura na infância?
Nunca abandonei as minhas primeiras leituras. Mantenho até hoje o hábito de ler obras infantis e infantojuvenis. O mesmo se deu com os gibis: na medida que crescia fui conhecendo obras para o público adulto, mas não abandonei a produção mais infantil. Esse amor pelos livros infantis me levou a dois caminhos importantes: me tornar um leitor e um escritor. Creio que a maior importância resida nesse fato: a leitura na primeira infância é a forma mais promissora de transformar alguém em leitor. Além disso, é importante mencionar que o contato com os livros literários, na infância, contribui para despertar a criatividade nas crianças, tal como proporciona uma melhor compreensão de mundo, enriquece o vocabulário, etc…
No meu caso, o estopim para fazer o primeiro livro infantil foi o nascimento do meu filho, há dez anos. Desde então, tenho escrito para esse público com regularidade. A última obra, recém-lançada, se chama Sr. Bigodes era o seu Nome. Esse livro ganhou vida com recursos da Lei Aldir Blanc, que foi um sopro de ar fresco nesses tempos sombrios – Sr. Bigodes foi distribuído de forma gratuita nas escolas públicas da cidade de Araxá! Com ilustrações de Ton Lima, o livro conta a história de uma menina que tenta convencer a mãe a adotar um gato. A reviravolta está no fato do gato se revelar posteriormente – coisa absurdamente comum – uma gata (e prenha).
– Você também traz literatura para as redes sociais…Quais são as vantagens e os desafios de ocupar esses espaços virtuais?
Nessas redes, um poema me chamou especial atenção, Obituário. Penso nele como um registro, uma denúncia dos tempos… suponho que possa ter servido como elaboração de sentimentos seus e acolhimento dos do leitor.
Ainda podemos ter esperança de que aí também está uma potência de desalienação ou promoção de mudanças comportamentais/ideológicas?
A minha geração começou a publicar e postar textos literários em blogs. Essas páginas surgiram antes das redes sociais e eram espaços muito promissores para divulgar textos e ter contato com novos autores. Conheci nesses locais muitos escritores que admiro muito, tal como fiz muitos amigos da área. Quando surgiram as redes sociais, os blogs perderam força (ainda que o meu continue no ar). Minha geração foi pulando de novidade em novidade, buscando aproveitar ao máximo todos os recursos disponíveis nesses ambientes virtuais (dos blogs pulamos para o Orkut, do Orkut para o Facebook e depois para essa infinidade de plataformas). É inegável que o livro de papel, publicado de forma tradicional, continue tendo muito mais peso em nossa sociedade – basta pensar que muitas pessoas consideram “autor” aquele que publicou um livro em papel. Da minha parte, acho as redes sociais um local fantástico para contato com leitores, autores e todo o mundo do livro: são espaços dinâmicos que, se bem usados, podem trazer bons frutos.
Já como desafio, podemos pensar na velocidade das redes sociais, na forma brutal com que o feed de notícias funciona. Essa velocidade transforma tudo em temporário, em fugaz. Essa situação frusta muitos autores, que passam a acreditar que os mesmos poemas que são descartáveis no ambiente virtual, seriam muito mais apreciados e duradouros em um livro físico – o que está longe de ser verdade. O poema, tanto em espaços virtuais quanto em livros físicos, sempre atinge um público leitor reduzido (salvo raras exceções): basta pensar que livros de poemas tem, na maior parte das vezes, tiragens de 500 exemplares, isso em um país de 210 milhões de habitantes! Uma tiragem de dois mil exemplares, hoje em dia, é uma insanidade.
Obituário é uma obra em progresso. São poemas sobre a pandemia que estão saindo aos poucos e formando um livro. Na medida que vou escrevendo, posto nas redes sociais: na maioria das vezes, são poemas duros de escrever, como tem sido duro viver em um país com mais de meio milhão de mortos – muitos desses óbitos, é importante frisar, totalmente evitáveis. Um dia, pretendo organizar todos esses textos em uma obra.
– Enfim, vamos a trocas rápidas?
Um livro: Detetives Selvagens, Roberto Bolaño.
Um poema: Amor à Primeira Vista, Wislawa Szymborska.
Um excerto: “POESIA / Eu também a abomino: há coisas mais importantes do que todo esse desatino. Lendo-a, todavia, com total desdém, é possível que se presuma ali, afinal, um lugar para o genuíno.” Marianne Moore
Um recado aos leitores, escritores e professores neste momento difícil:
Isso vai passar. Recorro a um poema do Drummond, escrito nos anos 40 e incrivelmente atual: “O presente é tão grande, não nos afastemos. /
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”.