Você já percebeu que quando conhecemos alguém tendemos a dialogar da seguinte maneira: “Oi, Gisele, o que você faz da vida?”…“Sou recepcionista e você?”
É curioso como a profissão dá um “norte” sobre quem somos, não é? Dentre todas as características, a que mais importa é a carreira, mas Gisele também toca violão por exemplo, e dificilmente isso seria citado de primeira. Eu já me deparei com essa situação estando desempregada e quando alguém perguntou o famoso: ‘o que você faz da vida?’ A resposta simplesmente sumiu. Então eu decidi que precisava entender porque a Gabriela ser humano complexo e completo saiu de cena pelo fato de não estar trabalhando naquele momento. Parecia que minha identidade estava apagada, ou que eu não tinha tanto valor quanto alguém que estava trabalhando… Pois bem. Observando a internet, conversando com amigos e pessoas próximas, vejo que é muito mais um sentimento coletivo do que propriamente meu.
Como se criam identidades?
O pensador francês, Claude Dubar, em seu livro Crise das Identidades, discorre sobre como formamos nossa personalidade, basicamente em torno daquilo que a sociedade tem seus firmes pilares: trabalho, relacionamento afetivo, religião e família. Muitas vezes quando uma dessas áreas está em queda, entramos em crise indenitária. Eu acredito que nós, enquanto seres individuais com suas individualidades, somos pouco incentivados a buscar autoconhecimento para além daquilo que permeia a nossa existência trabalho-relacionamento-religião-família. Nós conhecemos pouco e valorizamos menos ainda nossas características mais subjetivas, sobretudo daquilo que nos torna únicos em cada existência. Acaba por ser uma vida automática sem questionamentos.
Como vivemos em uma sociedade capitalista, para termos onde morar, o que comer, tratar doenças, dependemos de dinheiro. Dinheiro esse obtido através da venda de nossa força de trabalho. Naturalmente a valorização e pressão em cima da construção de uma carreira é grande, fazendo com que seja a principal competência que alguém deva ter, afinal, sua vida (literalmente) depende daquilo!
Esse fato me lembrou de um episódio da minha séria favorita chamada Merlí. A série se passa em torno de um professor de filosofia que ministra aulas para alunos de uma escola pública na Catalunha. O episódio que me refiro é sobre a dialética do senhor e escravo do pensador Hegel. Para ele, de forma extremamente resumida, o senhor através de todo seu poder, tem tempo livre pois tem o escravo que faz tudo por ele. Mas na verdade, o senhor não é livre, ele se torna escravo, porque depende o tempo todo de alguém. Portanto o escravo se torna senhor pois sabe de seu trabalho e pode escolher o que fazer. Para Hegel, a consciência de si e liberdade vem através do trabalho.
O que Hegel não contou nessa equação é que não nos tornamos senhores, pois ainda assim seremos escravos, só que dessa vez, do trabalho e de nós mesmos. Não é novidade que vivemos em uma cultura do século XXI onde cultuamos a superprodução, “trabalhe enquanto eles dormem”. Ou quando trabalhamos para pagar boletos, pois o dinheiro recebido não é o suficiente para ter um lazer. Ou quando se tem um “subemprego” sendo diarista ou recepcionista de hotel é resultado de alguém que fracassou na vida. A pressão que existe em torno de ser “alguém na vida” através do trabalho é esmagadora, atire a primeira pedra quem nunca se sentiu encurralado, esgotado e extra cobrado sobre esse assunto, do empreendedor ao lixeiro, sem exceção. No livro A Sociedade do Cansaço, o Byung-Chul Han contesta exatamente isso na citação abaixo:
‘‘Também o aceleramento de hoje tem muito a ver com a carência de ser. A sociedade do trabalho e a sociedade do desempenho não são uma sociedade livre. Elas geram novas coerções. A dialética de senhor e escravo está, não em última instância, para aquela sociedade na qual cada um é livre e que seria capaz também de ter tempo livre para o lazer. Leva ao contrário a uma sociedade do trabalho, na qual o próprio senhor se transformou num escravo do trabalho. Nessa sociedade coercitiva, cada um carrega consigo seu campo de trabalho. A especificidade desse campo de trabalho é que somos ao mesmo tempo prisioneiro e vigia, vítima e agressor. Assim, acabamos explorando a nós mesmos’’.
Então é isso mesmo? Somos escravos do trabalho?
Abaixo a sociedade capitalista? Ódio ao trabalho? Estamos vivendo errado? Devo pegar uma mala, abandonar a sociedade e viver na floresta? Não acredito que mudanças drásticas sejam a resposta. Comece se perguntando quem é você além do seu trabalho ou formação. Se não soube responder ou foi difícil de concluir, eu lhe digo: bem-vindo ao caminho do autoconhecimento! Uma jornada que abrirá portas e principalmente respostas sobre você.
Há quem diga que trabalhar não a torna um escravo porque gosta das longas horas de tarefa, ou que tem tempo para fazer tudo o que gosta na vida, etc. O problema muitas vezes não são os padrões que existem na sociedade, mas sim o não questionamento se aquilo é certo ou errado, se é saudável ou não. A nossa liberdade está no poder de refletir, questionar e principalmente poder escolher. Assim cada um terá a sua própria resposta se é ou não escravo do trabalho.
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