Era 1999 quando o poeta cearense Antônio Carlos Belchior lançara a canção “Conheço o meu lugar”, um manifesto musical, que contrapunha uma visão de Nordeste como o “lar dos esquecidos, condenados e ofendidos”, constantemente aludida no imaginário nacional.
As ideias destacadas nessa canção situavam a ideia de “Nordeste” como algo fictício. Essa noção também estaria presente em outra obra publicada nesse mesmo ano (1999), o livro “A Invenção do Nordeste e outras artes”, do historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, resultado de uma tese de doutoramento defendida em abril de 1994 na UNICAMP.
Ao introduzir o seu livro, Durval simula a experiência de um telespectador ao zapear entre os canais e defrontar-se com algumas narrativas acerca essa região: uma cobertura das festas juninas, onde humoristas procuram insistentemente por alguém vestido de cangaceiro; uma novela das oito situada no “Nordeste”, com a presença de um coronel, muitos tiros e tocais, o padre, a cidadezinha do interior onde todos os personagens falam “nordestino”, uma língua formada por um sotaque postiço e acentuado e um conjunto de palavras pouco usuais; enquanto o outro canal falaria sobre a seca e crianças chorando de fome.
O historiador encontra algo em comum entre todos esses discursos:
É a estratégia da estereotipização. O Discurso da estereotipia é um discurso assertivo, repetitivo, é uma fala arrogante, uma linguagem que leva à estabilidade acrítica, é fruto de uma voz segura e autossuficiente que se arroga o direito de dizer o que é o outro em poucas palavras. O estereótipo nasce de uma caracterização grosseira e indiscriminada de um grupo estranho, em que as multiplicidades e as diferenças individuais são apagadas, em nome de semelhanças superficiais do grupo.
Todavia, o caminho para superação desse discurso não é simples. Não se trata apenas de aponta-lo como mentiroso, perpassa também o entendimento das relações de poder e saber que produziram estas imagens e estes enunciados clichês, que inventaram este Nordeste e estes nordestinos, aponta Durval.
Para um entendimento mais aprofundado acerca dessas relações de força é recomendável a leitura integral dessa obra. Contudo, destacamos que até a primeira década do século XX não existia “Nordeste” ou imagens pertinentes a essa porção territorial.
O termo Nordeste é usado inicialmente para designar a área de atuação da Inspetora Federal de Obras Contra a Seca (IFOCS), criada em 1919. Neste discurso institucional, o Nordeste surge como a parte do Norte sujeita às estiagens e, por essa razão, merecedora de especial atenção do poder público federal.
Desde então já passamos mais de um século, todavia ainda vemos sujeitos associando o Nordeste ao estereótipo da escassez de água. Nesse sentido, tornou-se motivo de ironia o desempenho dos atletas nordestinos em esportes aquáticos nas Olimpíadas de Tóquio, conquistando medalhas no Surfe – com Italo Ferreira, na Canoagem de Velocidade – com Isaquias Queiroz e na Maratona Aquática – com Ana Marcela Cunha, provando que o Nordeste possui água e ouro.
Nesse sentido, o afastamento de generalizações fáceis permite um conhecimento mais amplo e profundo do Brasil como um todo, nos afastando de uma visão que coloca aquilo produzido no Nordeste como meramente regionalista.
Referência: ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. O engenho anti-moderno: a invenção do Nordeste e outras artes. 1994. 500f. Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP. Disponível em: <http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/280137>
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