Em texto anterior, esbocei o gérmen de um pensamento que creio ser necessário desdobrar em um certo sentido. Falei de um costumeiro retorno a tradições consideradas por alguns como seguras. Sugeri que essas recitações tradicionais nos lançam de encontro a mitos passados, rodados no presente e no horizonte expectativas próximo. Faço uma indagação: o que existe nas memórias históricas do Brasil que nos inspire a superar as crises contemporâneas?
A pretexto disso, elaboro uma breve reflexão. As tragédias de um passado colonial remetem a uma longa escravidão de populações humanas traficadas do continente africano e sistemático assassinato dos ameríndios. Hoje, o povo brasileiro incorpora de um lado os herdeiros dos exilados pela diáspora compulsória e, de outro, os sobreviventes do genocídio e etnocídio dos povos originários. Pouco há de grandioso nessa sanguinolenta desventura.
Talvez seja urgente pensar com seriedade dobrada sobre o que estamos fazendo de nós mesmos, digo, ontologicamente, subjetivamente. Nesse momento tão catastrófico para o Brasil e para o restante do planeta, indagações de ordem filosófica podem ser taxadas como uma futilidade ou um adereço inútil. Argumento, entretanto, que essa é uma visão superficial. Estudiosos como Ailton Krenak e Eduardo Viveiros de Castro elaboram uma crítica a sociedade contemporânea que solapa a noção cristalizada de humanidade que temos e que é filiada aos mesmos sistemas de pensamento que matou índios e escravizou africanos.
Para esclarecer essa questão, a ideia de imanência me parece muito importante e não é tão complicada quanto parece ser. Uma atitude imanente possível é não crer em qualquer tipo de fatalismo, mecanicismo ou mesmo destino, tudo isso que é sempre engarrafado sob rótulos pomposos para a venda. Essas estrovengas têm sido consumidas como água, fazendo as vezes de entidades sagradas. Surgem soluções milagrosas, como oferendas benzidas em igrejas neopentecostais que prometem cura de males. No plano político, fórmulas igualmente insanas e charlatãs são receitadas.
Como escreveu Viveiros de Castro, uma descolonização permanente do pensamento precisa ser estimulada, mirando um plano de criação de valores que abra definitivamente as portas para a reconciliação com as memórias históricas controversas e cruéis – e isso não ocorrerá a partir da sua negação. Uma síntese bastante precisa dessas convulsões foi feita por Darcy Ribeiro. Cito:
Nenhum povo que passasse por isso [escravidão, tortura, assassinato em massa] como sua rotina de vida, através dos séculos, sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós, brasileiros, somos, por igual, a mão possessa que os supliciou.
Essa é uma constatação crua das nossas heranças. Difícil haver alguma receita que faça “nós brasileiros” resolvermos nossos problemas de uma tacada, e certamente as “soluções” do mercado financeiro e do capitalismo mundial integrado – que são netos desses suplícios escravagistas – não poderiam apontar veredas minimamente inclusivas para os netos daqueles supliciados.
Todo tipo de desinformação, imbecilidade e trapaça é veiculada no “atacado e no varejo para enganar os abestados”, como cantou o artista popular Falcão. Cada dia nos vemos mais afastados de potências imanentes que pulsam no nosso sangue e apostamos em transcendências fajutas, mitos salvadores, enfim, tudo aquilo que menos nos interessa e que mais vitimou os subalternos brasileiros geração após geração. Penso que cabe uma radical revisão das pretensas soluções requentadas que consumimos, como neoliberalismo, diminuição do estado, etc.
Para concluir, retomo um questionamento de Darcy Ribeiro, ao qual – resguardadas as diferenças – se aliam de uma forma ou de outra as posturas críticas de Eduardo Viveiros de Castro e Ailton Krenak: como “reinventar o país que a gente quer ser”? Para além das inquietações que levantei e que representam um ponto de vista, busquemos descolonizar permanentemente o pensamento, com as vistas voltadas para essa pergunta tão crucial.
Referências:
CASTRO, Eduardo Viveiros de. Metafísicas Canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: UBU Editora, n-1 edições, 2018.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: companhia das letras, 2006.
** É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita. O Jornal 140 não se responsabiliza pela opinião dos autores deste coletivo.