Nem preciso dizer que o faroeste é considerado o gênero mais americano na arte cinematográfica. Eles conseguiram representar sua história passada numa jornada para descobrir um território desconhecido, mas cheio de aventura. Não gosto de disputas territoriais com os povos indígenas, mesmo tendo Rastros de Ódio (1956) como meu filme favorito de todos. No filme, o racismo do personagem de John Wayne, brilhantemente dirigido por John Ford, é um elemento fundamental para entender a trajetória de seu personagem.
Gosto muito mais quando o herói tem que enfrentar um grupo de malfeitores que domina uma pequena cidade do Oeste Selvagem, como acontece em Onde começa o Inferno (1959), um dos grandes trabalhos de Howard Hawks. Um filme fantástico que vi a primeira vez num cinema da cidade natal da minha mãe, Campos Altos, no Triângulo Mineiro. É claro, era uma reprise, mas no alto dos meus onze anos, os Bons vencendo os Maus no Velho Oeste era entretenimento puro.
Reza a lenda que o diretor Howard Hawks decidiu fazer Onde Começa o Inferno como uma resposta ao psicológico Matar ou Morrer, estrelado por Gary Cooper e Grace Kelly, em 1952. Hawks, abominava a ideia de um personagem forte como o xerife feito por Cooper, ficasse com medo de enfrentar o chefe de uma quadrilha que ele tinha prendido anos antes e, agora, estaria voltando para se vingar. Gosto de Matar ou Morrer, mais pela forma do que pelo conteúdo. O roteiro foi de Carl Foreman, responsável por O Selvagem e Os Canhões de Navarone, mas teve que emigrar para a Inglaterra por estar na lista negra do Comitê de Atividades Antiamericanas. E o personagem de Cooper era o anti-herói americano em Matar ou Morrer.
Os primeiros minutos de Onde Começa o Inferno mostraM que o que você vai assistir é um dos melhores faroestes já feitos. Dude (Dean Martin, da versão original de Onze Homens e um Segredo, o ex-delegado da cidade, é um alcoólatra em busca de um drinque fácil. Ele esbarra com o irmão mais novo do grande empresário da região, Joe Burdette (Claude Akins, da série Xerife Lobo). Sabendo o desespero de Dude em tomar uma dose, ele joga uma moeda dentro de uma escarradeira, uma das coisas mais nojentas do Oeste Bem Selvagem. No momento em que ele vai se humilhar pegando a moeda, a escarradeira é chutado pelo seu ex-chefe, o Xerife John T. Chance (Wayne).
Possesso pela perda da oportunidade de tomar uma nova dose, Dude golpeia Chance, que cai no chão. No momento de explodir sua raiva, Dude é pego pelos comparsas de Joe, que começa a esmurrá-lo sem dó. Só não continua a surra, porque um bom samaritano o impede, mas leva o troco. Joe saca sua arma contra um homem desarmado e dispara a queima-roupa. E sai do lugar como se tivesse acabado de sair de uma balada com os amigos.
Na sequência seguinte, Joe entra num outro boteco, mas seu divertimento é impedido por Chance, que entra no bar ainda atordoado e muito disposto a levar Joe Burdette para a cadeia. Joe, ao contrário, pensa que vai sair dessa ileso, já que sabe do poder que seu irmão Nate, tem na região. O que Chance ou Joe não poderiam imaginar era a chegada furtiva de Dude. Ele ajuda a capturar o assassino e levá-lo para a cadeia. E tudo isso sem um único diálogo.
O título original, Rio Bravo, faz referência ao rio que nasce no Estado do Colorado e acaba se transformando em seu trajeto, na fronteira do México com o Texas. Mas a cidade fictícia onde se passa a ação foi construída em Old Tucson, no Arizona, onde está preservada até hoje para visitação. A mesma cidade junto com os cenários da cadeia e do hotel, foram feitos nos estúdios da Warner Bros, onde John Wayne havia feito Rastros de Ódio, três anos antes. Aliás, assim que o filme estreou, Wayne declarou que não faria mais faroestes.
Mas seu descontentamento com o estilo de Matar o Morrer, foi o suficiente para aceitar a proposta de Howard Hawks de mostrar como se faz um herói do Velho Oeste. Qualquer crítico analisaria o filme como uma produção repleta de clichês do gênero os bons moços enfrentam os moços maus. E exatamente isso vem a força desse filme mais de 60 anos de sua primeira exibição. Se você não for um daqueles críticos amadores de gostam de achar pelo em ovo, vai descobrir um grande filme, repleto de drama, suspense, ação e uma bela dose de bom humor.
A história básica é simples: o xerife precisa manter o assassino mimado na prisão por uma semana, até que o delegado federal o leve para a capital do estado, onde será julgado. Para isso, ele só pode contar com a ajudar inicial Dude, que está na beira de uma recaída, e Stumpy, num dos grandes momentos de Walter Brennan, mancando e sem suas dentaduras, dando um ar ao seu personagem engraçado, mas terno. Especialmente por que Nate Burdette (John Russell), está pagando uma moeda de outro de 50 dólares, para quem tirar o irmão da cadeia, com ou sem os corpos dos homens da lei da cidade.
Aliás, existe uma cena muito forte e emblemática, que mostra a determinação de Chance em continuar sua missão. Toda vez que ele sai da cadeia, Stumpy fica com uma arma pronta para disparar se alguém entrar sem sua autorização. Quando Nate vai visitar Joe, ele adverte Chance que os “amigos” do irmão caçula podem tentar tirá-lo à força. É quando Chance diz que se isso acontecer, o primeiro que vai morrer é Joe, com ordem direta para Stumpy fazê-lo. Questionando a violenta decisão, Chance ironicamente diz que, se isso chegar a acontecer é porque todos estarão mortos e não vai fazer a menor diferença. Ao não ser, claro, para Nate.
Howard Hawks sabia como lidar com cenas tensas e ao mesmo tempo, bem-humoradas, especialmente quando estão em cena John Wayne e Angie Dickinson em seu primeiro grande papel no cinema. Ela não tem um nome para é chamada de Feathers, por usar penas em suas roupas, mas a tensão sexual entre os dois começa desde a primeiras cenas juntos. Só para lembrar, Howard Hawks é o responsável por grandes comédias da telona como Levada da Breca (1938), Jejum de Amor (1940), O Inventor da Mocidade (1952) e o Homens Preferem as Loiras (1953).
Numa das primeiras cenas onde a tensão sexual entre Feathers e Chance está no auge, é quando ela toma a iniciativa e dá um selinho em Chance. Ela se afasta um pouco e volta para uma segunda rodada, que é bem mais receptiva do que o selinho. Aí, o roteiro de Jules Furthman e Leigh Brackett, criam uma das melhores frases para Feathers, que representa a relação entre os dois: é muito melhor quando os dois fazem juntos. Na realidade, Furthman fez uma nova versão da frase que escreveu originalmente para Lauren Bacall, num diálogo com Humphrey Bogart em Uma Aventura na Martinica (1944).
Enquanto isso, a tensão cresce na cidade. Todos esperando o Xerife Chance baixar a guarda para o chinês da funerária começar a recolher os corpos. Ele decide que não quer ninguém do seu lado que não saiba a fria que é enfrentar a gangue dos Burdettes. Uma das cenas mais criativas do filme, mostra Dude eliminando de uma forma sem igual, o responsável pela morte de um voluntário. Mas a bebida, ou melhor, a falta dela, está deixando Dude cada vez mais inseguro, especialmente quando entra em cena o jovem pistoleiro Colorado, interpretado por Ricky Nelson, que tinha uma carreira de sucesso na televisão americana no começo dos anos 50, sem contar que também cantava muito bem.
Sentindo-se ameaçado, Dude quase faz o impensável, reforçando o drama do personagem. Como a ideia do filme é mostrar um herói caído ressurgindo das trevas, a cena seguinte mostra um memorável dueto entre Ricky Nelson e Dean Martin, com a divertida participação de Walter Brennan, que mesmo sem os dentes, não desaponta os fãs. Ali estava a cena que mostrava um pouco a arte de Howard Hawks, construindo uma forte amizade entre quatro pessoas, numa ligação mais forte do que o perigo em que se encontravam.
O filme reforça a ligação entre companheiros de uma árdua jornada. Chance tenta recolocar Dude novamente na sela, depois do tombo que o transformou num alcoólatra, sem, contudo, de pressioná-lo para a sua retomada. Quem sente mais a pressão da nova relação é Dude, só que ele reconhece a ajuda de Chance, criando uma ligação ainda mais forte de respeito e amizade, como numa relação paternal. Tudo isso, dentro do que Howads Hawks já havia construído em outros personagens de outros filmes.
Nada é deixado ao acaso em Onde Começa o Inferno. A participação de Pedro Gonzalez como Carlo, o dono do hotel onde Chance encontra Feathers a primeira vez. Carismático, o personagem serve para o público dar uma respirada até a próxima saraivada de balas. Não é um filme violento, como poderiam argumentar. A violência gráfica foi mais um clichê usado por Hawks para dizer que o Oeste Americano não só era um lugar para os mais fortes, com ou sem estrela, e principalmente, para a honra e a amizade
O filme é um marco na história do gênero. Fez um sucesso descomunal ao redor do mundo e, segundo estudiosos do assunto, foi o responsável por ajudar a criar o western spaguetti, ou conhecido como o bangue-bangue à italiana. Basta dizer que vários sucessos do faroeste dos anos 60 vieram da Itália como O Dólar Furado (1965) e a trilogia de Sergio Leone, Por um Punhado de Dólares (1964), Por Uns Dólares à Mais (1965) e Três Homens em Conflito (1966). Sem contar Era uma Vez no Oeste (1968). Curiosidade sobre o talento de Sergio Leone: ele foi o responsável de convencer Henry Fonda, considerado o “paizão” do cinema americano, e o transformou num dos mais desagradáveis vilões do cinema com sua interpretação em Era uma Vez no Oeste.
Onde Começa o Inferno é uma dessas obras que parece não fazer diferença dentro do gênero, mas acabou se transformando num clássico referência para filmes modernos como A Qualquer Custo (2016) ou as séries Justified (2010) e Xerife Longmire (2012). O faroeste pode não ser hoje um gênero importante na hora de ir para o cinema. Ele tem sido recuperado ao longo de seu auge entre as décadas de 40 e 60, em obras pontuais como Silverado (1985), O Cavaleiro Solitário (1985), Os Imperdoáveis (1992) e Cry Macho: O Caminho para Redenção (2021), os três últimos estrelados e dirigidos por Clint Eastwood, o astro da trilogia de Leone.
Hawks gostou tanto do que fez que acabou recriando a história em dois outros filmes Eldorado (1966) e Rio Lobo (1970), ambos com John Wayne. O importante nessa história é que hoje você pode assistir essa obra-prima do faroeste através da HBO Max, que ousa em disponibilizar um filme que, pela falta de conhecimento histórico, será desprezada pela nova geração de fãs de cinema. Pena, porque Onde começa o Inferno é uma verdadeira aula de como se fazer um bom filme.
Agora vou torcer para postarem também Rastros de Ódio… aí, sim, é o cinema puro.
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