O primeiro beijo entre duas pessoas do mesmo sexo (só para não falar o chavão clássico; beijo gay) foi em Diabólicos Sedutores, filme de 1970, que assisti numa Sessão de Gala da Rede Globo, exibida nos finais de noite de sábado. O filme mostrava o ambicioso Konrad Ludwig (Michael York), que sai do interior da Áustria, conseguindo um emprego de mordomo no castelo de uma viúva nobre decadente, interpretada por Angela Lansbury. O plano de Konrad é fazer com que o jovem filho da viúva se case com a filha de um burguês rico da região, para que a fortuna da garota acabe nas mãos da viúva.
Simples, não é mesmo. O problema é que, nesse jogo de poder, Konrad usa o sexo para manipular todo esse cenário, que acaba na noite anterior ao casamento entre os dois herdeiros. A garota entra no quarto do futuro marido, chocando-se com a cena de Konrad beijando-o. Pelos meus olhos, a cena foi uma grande surpresa, totalmente impactante pela maneira que aconteceu. Obra de Harold Prince, um competente diretor de teatro com vários prêmios Tony do currículo, que fez sua estreia no cinema nesse ousado filme.
A partir desse filme, comecei a reparar em como os cineastas eram sutis quando algum personagem era homossexual. O diálogo final entre os personagens interpretados por Liza Minelli e Michael York em Cabaret (1972) revela a ela que o triangulo amoroso deles com Helmult Griem tinha duas pontas iguais. O mesmo acontece com Andrey Hepburn e Shirley MacLaine no clássico Infâmia (1961), quando acusam falsamente as duas professoras de terem um caso dentro de um internato feminino. Quando Audrey ouve da amiga e colega de trabalho o que Shirley sentia verdadeiramente por ela, o final é trágico…
Em todos os meus anos vendo filmes, assistindo séries e lendo gibis, nunca dei muita bola para questões envolvendo a sexualidade dos personagens. É claro que, do final do século passado até os dias de hoje, existe um pequeno grande movimento para que as pessoas em geral não esquentem mais a cabeça com questões LGBT (essa é uma sigla que conheço, à nova com mais letras e sinais ainda estou me adaptando). Assisti as séries Os Assumidos (Queer as Folk, 1999), sobre a comunidade gay de Los Angeles, que tinha cenas dignas dos melhores pornôs soft dos anos 80 (sem sexo explícito). O mesmo com The L Word. Duas produções ousadas que – independentemente da questão de orientação sexual – se mostraram bons dramas da telinha.
Mesmo nas séries mais sisudas como Nova York contra o Crime (1993), a participação de algum personagem gay fazia parte da história, como foi o caso do escrivão John Irvin, feito por Bill Brochtrup, durante dez temporadas. Em Supergirl, Alex Danvers (Chyler Leigh), a irmã terrestre da prima do Superman, se assumiu gay na primeira temporada, e isso não mudou nada os rumos da história. O mesmo quando introduziram a personagem transgênero Dreamer, feita por Nicole Maines, que é mesmo uma atriz transgenera.
O Universo DC já convive com essa diversidade há muito tempo. Veja o caso de Batwoman, personagem recriado em 2006 e que foi adaptada recentemente para a TV, na série que está disponível pelo HBO Max. A personagem original foi criada nos anos 50 para ser a resposta da editora às insinuações de que Batman e Robin tinha uma relação intima, conforme pregava o psiquiatra alemão Fredric Wertham em seu livro Sedução dos Inocentes, publicado em 1954. Com a Batwoman, Bruce Wayne teve uma relação amorosa tradicional, enquanto Robin ganhava também uma possível namorada com o surgimento de Batgirl.
A nova Batwoman é gay assumida e inicialmente mantinha um relacionamento com a detetive Renee Montoya, da polícia de Gotham, personagem que surgiu na série animada do Batman (1992). Na série de TV, as duas atrizes que trabalharam na série como a heroína, eram atrizes assumidas sexualmente, Ruby Rose na primeira temporada e depois Javicia Leslie. E mais uma vez, a sexualidade dos personagens não interfere na trama, uma vez que a questão romântica sempre fica por cima da questão de gênero.
Ser você chegou até aqui na leitura, deve estar se perguntando o que o título da matéria tem a ver com os exemplos LGBT+ que eu escrevi. Tudo remete ao caso, que causou mais controvérsia do que esclarecimento, do beijo que o filho do Superman, Jon Kent, dá num colega, revelando sua bissexualidade. Esse ano é o segundo personagem da DC Comics que sai do armário, depois que Tim Drake, o garoto que assumiu o papel de Robin após Dick Grayson e Jason Todd, revelar sua nova orientação sexual em agosto.
A questão da criação desse momento é saber se colocar o novo Superman como bissexual foi algo inclusivo, ou foi o tradicional oportunismo de criar uma situação para gerar repercussão nas redes sociais e, claro, aumentar as vendas. Neste quesito, a DC ainda tem muito o que aprender. O momento considerado mais importante na carreira do Homem de Aço, a sua morte nos anos 90, gerou a venda de 250 mil exemplares da edição fatal apena no Brasil à época, enquanto hoje, nos Estados Unidos, há uma verdadeira batalha silenciosa para emplacar a venda de pelo menos 60 mil exemplares da edição do beijo que chega essa semana nas revendas e digitalmente, uma vez que as edições regulares da revista do filho do Superman têm vendido em média 40 mil.
Não quero alimentar mais a polêmica sobre o comentário que o jogador do Minas Tênis Clube, Mauricio Souza, fez em sua rede social em relação ao gibi americano (ainda não se sabe quando a Panini irá lançar essa edição no Brasil). Ele emitiu sua opinião e acharam melhor jogá-lo na fogueira, causando a perda de seu emprego. Agora… e se ele falasse sobre a relação incestuosa de Cersei Lannister com seu irmão Jaime no primeiro episódio da série Game of Thrones? Ou se decidisse comentar o filme Beijos de Borboleta, lançado em 2017, onde o personagem principal é um pedófilo?
Todos esses outros exemplos também estão no código penal brasileiro assim como a homofobia. É claro que existem problemas práticos (políticos) para prender pedófilos, por exemplo. O senador Omar Aziz foi investigado pela CPI de Crimes Sexuais contra Crianças, em 2004, quando era vice-governador do Amazonas. Mas o foro privilegiado tem protegido o político de um processo, mesmo ele afirmando que isso é intriga da oposição. É de se supor que existe uma Espada de Dâmocles sobre sua cabeça…
E depois de tantos exemplos, situações do dia a dia, controvérsias e polêmicas, qual seria o caminho mais tranquilo para o cidadão comum trilhar neste contexto? Não adianta ficar em cima do muro porque lá de cima a queda pode ser feia, tanto de um lado como de outro. Antes de escolher um lado, pesquise, converse, conteste, até chegar numa opinião consistente. Não vá na conversa de pessoas que não entenderam a polêmica relacionada ao beijo do Superman.
Não existe crime de opinião e nem de fake news. Consulte o código penal, ele está disponível na internet. Seja proativo, pesquisa quando esse tipo de polêmica bater na sua porta. Acredite, mais cedo ou mais tarde, ela vai chegar até você. Mesmo em tempos obscuros como o que vivemos, com tanta insegurança jurídica vinda das altas cortes, ainda existe um pouco de esperança de que ainda estamos vivendo em um estado democrático.
Hoje, ainda posso expressar minha opinião… Se num futuro (espero) muito remoto transformarem a opinião em crime, tentarei não ser Winston Smith, o personagem central de 1984, de George Orwell. Resistirei para não ser tragado pelas sombras, como muitos ao meu lado já foram.
** É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita. O Jornal 140 não se responsabiliza pela opinião dos autores deste coletivo.