O olhar do historiador
O advento do século XX será marcado por novos traçados na forma como a história era produzida. A revista francesa “Annales de histoire economique e sociale”, fundada por Marc Bloch e Lucian Febvre, em 1929, marcava a vanguarda de uma nova forma de história, ao romper com o “Antigo Regime”, dito positivista, cujo fundamento era um estudo sobretudo político, com base em documentos oficiais.
Para os Annales a luta que travavam era contra um modelo maçante pelo qual se estabelecia a história política: por um lado uma história narrativa e por outro uma história de acontecimentos, uma história fatual; um teatro das aparências que mascara o verdadeiro jogo da história. Nesse sentido, os Annales recusavam a história simplista, que se detém na superfície dos acontecimentos e investe tudo num fator. Se fazia apelo a uma história total, interdisciplinar, com novos problemas, novas abordagens e novos objetos.
A cidade como objeto de estudo
Os estudos acerca de cidades irão se beneficiar dessa redefinição das fronteiras historiográficas, que deixam de ser vistas como barreiras e passam a ser compreendidas como interfaces de contato entre diversas disciplinas, onde se estabelece a boa interdisciplinaridade. Nesse âmbito, podemos observar a ampliação do interesse de pesquisadores de diferentes áreas sobre as cidades, compreendido pelo impacto do crescimento urbano nas intensas transformações da contemporaneidade.
No livro “Viagem Incompleta: A experiência brasileira (1500-2000)” de Carlos Guilherme Mota o tema da urbanização é colocado em pauta por Nestor Goulart Filho, do ponto de vista do autor essa problemática só se tornará mais presente na vida dos brasileiros a partir de 1808, com a chegada da família real, intensificando-se com a maioridade de D. Pedro II e o fim do período regencial.
Para Goulart a chegada da família real deu início a evidentes repercussões sobre o sistema urbano. Com a abertura dos portos, ampliou-se imediatamente as possibilidades de articulação com o comércio internacional. Todavia o Brasil continuasse a ser uma retaguarda rural para os mercados europeus, mas já se notava um movimento de migrações internas, com a decadência das regiões de mineração, a população se deslocava para novas fronteiras de desenvolvimento, sobretudo regiões com a cultura do açúcar e café.
Durante a regência de D. João VI os quadros técnicos receberam um especial reforço, como a modernização da Academia Militar do Rio de Janeiro, que realizava levantamentos topográficos, reunia desenhos de caráter cartográfico e projetos arquitetônicos e urbanísticos. Juntamente a esse incentivo, o advento da reforma pombalina permitiu a abertura intelectual e estendeu conhecimentos urbanísticos a grupos de alta renda. Dessa maneira, durante o processo de independência e ao longo de meados do século XIX, os quadros políticos do Brasil podiam contar com uns poucos líderes de alto nível, orientando as transformações, inclusive nos padrões de vida urbana.
Decerto, Nestor Goulart afirma, em termos práticos, a independência era como uma continuação da última fase colonial, modernizavam-se os detalhes, sem mudar o fundamental. Nas cidades, as primeiras mudanças apareceram mais como alterações do estilo de vida do que urbanismo, como a ordem de alteração das fachadas dos edifícios, abrindo espaço para o uso de cortinas e vidraças, importadas da Europa.
A principal inovação foi o aparecimento de passeios para pedestres, todavia era uma modernização superficial, epidérmica, uma reconstrução do cenário, com os mesmos atores, incluindo o imperador e membros da família real. Na primeira metade do século XIX as vilas e cidades não dispunham ainda de serviços de esgoto e abastecimento de água que não fossem os chafarizes.
A cidade como objeto de desejo
Os anos que sucederam à maioridade do imperador são vistos como de significativa mudanças para o processo de urbanização. O crescimento da população urbana dos principais países europeus, que acompanhava o desenvolvimento da industrialização, provocou uma expansão significativa na demanda por produtos agrícolas como o açúcar e o café. Indiretamente, entusiasmou o aumento na produção dessas culturas e estimulou a instalação de uma infraestrutura de transportes e comunicação mais moderna, com capacidade mais ampla, na escala das novas capacidades locais.
A cidade-porto de Santos é um exemplo dessas transformações urbanas, situada no litoral paulista, foi premiada com a potencialização dos seus meios de transporte, que visava o escoamento mais prático da produção cafeeira, em contrapartida ao passo que se intensificava o tráfego local, afloravam problemas de saneamento, moradia e epidemias, em função de crescimento desorganizado.
Maria Aparecida Pereira pontua que diante das possibilidades de lucro, o plantio de café aumentou no interior paulista. Para atender o volume que devia ser exportado em Santos, um grupo de ingleses, em 1867, inaugurou uma estação ferroviária – a S. Paulo Railway – cujos trilhos, vencendo a Serra do Mara, numa obra de verdadeira engenharia, ligavam o porto às fazendas produtoras (a partir de Jundiaí), facilitando o escoamento e aumentando o movimento no porto. A autora aponta que a cidade não estava aparelhada para tal demanda, sendo necessárias obras de modernização, inclusive do porto, o antigo centro urbano, local de residência e trabalho, vai se modificando com o movimento intenso e barulhento das carroças de café.
Maria Izilda Matos afirma que nas décadas finais do século XIX, os velhos problemas de Santos foram ampliados com o crescimento desordenado das exportações de café e das populações urbanas. Relatos de viajantes que ancoravam na cidade chegam a classificar Santos como um “pântano imundo malcheiroso, um grande mangue cheio de mosquitos e cobras”, outros começam a evitar o considerado “porto da morte”, preferindo desembarcar em Buenos Aires e retornar por terra ou navegação de cabotagem.
A década de 1890 trouxe novos desafios para Santos, a situação sanitária da cidade causava prejuízos: sociais, com uma população doente e vulnerável; e econômico, com o afastamento dos navios. Intensifica-se então a preocupação com a higienização do espaço urbano e modernização/aparelhamento do porto. Em 1892, foi criada a Companhia Docas de Santos, que investiu na remodelação do cais. Contudo, a situação sanitária continuava a preocupar autoridades, médicos, comerciantes e exportadores, que enxergavam a necessidade de uma remodelação urbana, voltada para os pressupostos da higienização, assentados nos princípios do binômio civilização-progresso.
Essa necessidade em civilizar-se não era algo restrito a Santos, conforme os estudos de Nicolau Sevecencko, a capital do país, Rio de Janeiro, era a propulsora principal dessa “inserção compulsória do Brasil na Belle Époque”. O autor se conecta a diversos literatos e com um trecho de Lima Barreto indica “de uma hora para outra, a antiga cidade despareceu e outra surgiu como se fosse obtida por uma mutação de teatro. Havia mesmo na cousa muito de cenografia”.
Tornava-se evidente que havia algo de anacrônico entre os novos personagens e a velha estrutura urbana do Rio de Janeiro. As ruelas estreitas, recurvas e em declive, tipicamente coloniais, dificultavam as demandas dos novos tempos. O medo das doenças, somado às suspeitas para com uma comunidade de mestiços em constante turbulência política, intimidavam os europeus. Era preciso, pois, findar com a imagem de insalubre e insegura, com uma enorme população de gente rude planta no seu âmago, vivendo no maior desconforto, imundice e promiscuidade e pronta para armar em barricadas as vielas estreitas ao som do primeiro grito de motim.
Margareth Rago descreve de maneira mais detalhada a política “desodorização do espaço urbano”, instalada a partir dos primeiros anos da República. A “gestão higiênica da miséria”, mais que a preocupação com a medicalização da cidade, desejava disciplinar a gestão de vida do trabalhador. No Rio, as campanhas de saneamento, a demolição de antigos quarteirões, a abertura de novas avenidas, como a Avenida Central e o serviço de melhoramento dos portos são desenvolvidos durante a gestão do engenheiro Pereira Passos, assessorado pelo médico Oswaldo Cruz.
Como parte dessa política sanitarista de purificação da cidade, a ação dos higienistas incide também sobre a moradia dos pobres, de acordo com o desejo de governar a esfera do privado, tornar a casa um espaço da felicidade confortável, afastada dos perigos ameaçadores. O controle desses espaços se funda na crença que o cortiço e a favela constituem focos onde se origina surtos epidêmicos, os vícios e sentimento de revolta.
Em sua trajetória histórica, a problemática urbana foi se constituindo atravessada por pressupostos da disciplina e da cidadania. A cidade foi reconhecida como espaço de múltiplas experiências e tensões. Nesse sentido descortinam-se cidades plurais, a partir de um mesmo discurso de modernidade; uma primeira com feição higienista e disciplinadora, de caráter “civilizatório; e outra onde a produção de modernidade é tida como expressão de interesses em conflito, que de forma dialógica representam a totalidade do fazer social, portanto marcado pelo símbolo da ruptura e atualização com as tradições nos termos da arte e literatura.
Em suma, as problemáticas das cidades, desde o campo arquitetônico até as disputas no imaginário, revelam um traçado comum acerca da modernidade: as contradições.
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