Novos campos e novas abordagens na História
A historiografia ocidental sofreu fortes alterações na segunda metade do século XX, com a consolidação da Escola dos Annales como um forte núcleo de produção do conhecimento histórico na França. O advento de sua terceira geração em 1968 trouxe mudanças significativas na administração do grupo e, sobretudo, intelectuais.
Nesse período ninguém dominou o grupo, o policentrismo prevaleceu, levando adiante o projeto de Febvre, estendendo as fronteiras da história de forma a permitir a incorporação da infância, do sonho, do corpo e das mulheres.
Historiadoras como Christiane Klapisch, Arlette Farge, Mona Ozouf e Michèle Perrot direcionam seus olhares para esse campo; os historiadores anteriores dos Annales haviam sido criticados por movimentos feministas por deixarem a mulher fora da história, ou mais exatamente, por terem perdido a oportunidade de incorporá-la de maneira mais integral.
Contudo, nesta geração, historiadores como Georges Duby e Michèle Perrot mostram-se empenhados em organizar estudos efetivo acerca da história das mulheres, todavia esse não é um empreendimento exclusivo dos Annales, e se pode ver o desenvolvimento dessa historiografia simultaneamente nos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Alemanha, Holanda, dentre outros países.
A história das mulheres rompe o silêncio
No seu livro “Minha história das mulheres”, Michèle Perrot traça um itinerário da consolidação desse campo até o estabelecimento do termo gênero. Conforme a autora, hoje soa como evidente que uma história “sem as mulheres” seria impossível, entretanto foi um caminho árduo da passagem do silêncio à palavra.
A historiadora que foi uma das percussoras do estudo de gênero, afirma que em sua geração dominavam os interesses econômico e social, e a classe operária parecia a chave para compreensão da sociedade, acompanhando essa tendência sua tese foi sobre os “operários em greve”, na qual as mulheres ocuparam apenas um capítulo.
A história das mulheres despertaria seu interesse nos anos 1970, na esteira dos acontecimentos de maio de 1968 e do movimento das mulheres. Para Perrot, o desenvolvimento da história das mulheres acompanha em surdina o “movimento” das mulheres em direção à emancipação e à liberação. Trata-se da tradução e do efeito de uma tomada de consciência ainda mais vasta: a dimensão sexuada da sociedade e da história.
A autora aponta mudanças na forma como essa historiografia se edificou, nos seus objetos e pontos de vista. Partiu de uma história do corpo e dos papéis desempenhados na vida privada para chegar a uma história das mulheres no espaço público da cidade, do trabalho, da política, da criação. Partiu de uma história das mulheres vítimas para chegar a uma história das mulheres ativas, nas múltiplas interações que provocam mudança. Partiu de uma história das mulheres para tornar-se mais especificamente uma história do gênero, que insiste nas relações entre os sexos e integra a masculinidade. Alargou suas perspectivas espaciais, religiosas, culturais.
A historiadora norte-americana Joan Scott, em capítulo publicado no livro “A Escrita da História” de Peter Burke, faz um apanhado semelhante a Perrot, colocando em pauta a situação dos Estados Unidos. Para a autora, a conexão entre a história das mulheres e a política é ao mesmo tempo óbvia e complexa; em narrativas convencionais da origem deste campo, a política feminista é o ponto de partida. Foi dito que as feministas acadêmicas responderam ao chamado de “sua” história e dirigiram sua erudição para uma atividade política mais ampla, envolvendo a intelectualidade.
O acúmulo de monografias e artigos, o surgimento de controvérsias internas e o avanço de diálogos interpretativos, e ainda, a emergência de autoridades intelectuais reconhecidas foram os indicadores familiares de um novo campo de estudo, distanciando-se da política e prosseguindo sua trajetória para a problemático do gênero.
“Gênero” foi o termo usado para teorizar a questão da diferença sexual. Nos Estados Unidos, o termo é extraído tanto da gramática quanto dos estudos de sociologia dos papéis sociais designados às mulheres e aos homens. As feministas escolheram enfatizar as conotações sociais de gênero em contraste com as conotações físicas de sexo. Também enfatizaram o aspecto relacionado ao gênero: não se pode conceber as mulheres, exceto se elas forem definidas em relação aos homens, nem homens, exceto quando eles forem diferenciados das mulheres.
Além disso, uma vez que o gênero foi definido como relativo aos contextos social e cultural, foi possível pensar em termos de diferentes sistemas de gênero e nas relações aqueles com outras categorias como raça, classe ou etnia, assim como levar em conta a mudança.
Conforme Joan Scott, a categoria de gênero, usada primeiro para analisar as diferenças entre sexos, foi estendida à questão das diferenças dentro da diferença. A política de identidade dos anos 1980 trouxe à tona alegações múltiplas que desafiavam o significado unitário da categoria das “mulheres”. Na verdade, o termo mulheres dificilmente poderia ser usado sem modificações: mulheres negras, mulheres judias, mulheres trabalhadoras pobres, mães solteiras, foram apenas algumas das categorias introduzidas.
Michèle Perrot assinala a inscrição na História como um meio de “romper o silêncio”, um silêncio que ganhava grau de esquecimento ou invisibilidade em primeiro lugar, porque as mulheres eram menos vistas no espaço público; conforme a autora o corpo das mulheres apavora, é preferível que esteja coberto por véus; a mulher não tem sobrenome; seu acesso a escrita foi tardio; reduzida a estereótipos, são imaginadas e representadas, em vez de serem descritas ou contadas; a própria língua contribui para ausência de registros, quando há mistura de gêneros, usa-se o masculino plural: eles dissimula elas.
Por fim, Perrot aponta para a dificuldade de fontes para discutir as questões de gênero dando enfoque ao âmbito feminino, todavia sugere estratégias que recorram a arquivos privados como cartas, diários ou até mesmo autobiografias que agreguem a construção do conhecimento histórico.
** É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita. O Jornal 140 não se responsabiliza pela opinião dos autores deste coletivo.