Something wicked this way comes* canta o coral de alunos em Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, levando Shakespeare direto para Hogwarts, a letra da música saída de Macbeth, a mais sombria das tragédias do autor britânico, obra cercada de superstição, a ponto do nome da peça, como Voldemort, não ser pronunciado.
Além das inúmeras versões e adaptações do texto original, que vão de um longa que traça paralelos com a Romênia de Ceausescu estrelado por Patrick Stewart (Macbeth, 2010) ao Japão medieval de Trono Manchado de Sangue (Kumonosu-jô, 1957) dirigido por Akira Kurosawa, passando pelo espetáculo virtual Macbeth 2020, em que Luis Lobianco interpreta vários personagens de alguma forma envolvidos com montagens da peça, as inserções e influências em outras obras reforçam a força de Macbeth. Estudo sobre a ambição e o poder destrutivo da sede pelo poder, a peça encontra eco no comportamento humano de todas as épocas e lugares. Culpa, manipulação, o feminino e o masculino em suas demandas e relacionamento com a violência, destino e livre-arbítrio, real e sobrenatural, todos estão presentes e prontos para serem chamados por outros autores.
No revolucionário musical Hamilton, ao ser criticado pelas medidas que tenta implantar no recém-criado Estados Unidos, Alexander Hamilton é comparado a Macbeth em sua ambição e ânsia de deixar um legado. Na canção “Take a Break”, Lin-Manuel Miranda usa uma das frases mais conhecidas da peça, “tomorrow, tomorrow and tomorrow” ao relatar as críticas que o veem como o nobre escocês, James Madison como Banquo, Thomas Jefferson como Macduff e o Congresso como a floresta de Birnam a caminho de Dunsinane.
A ideia de uma floresta caminhando inspirou também outro autor. Após declarar em suas cartas sua decepção quando garoto com a forma como Shakespeare solucionou a profecia em que as bruxas dizem que Macbeth só será derrotado quando a floresta de Birnan caminhar, J. R.R. Tolkien fez os Ents marcharem para a guerra em O Senhor dos Anéis. Sai também de Macbeth um momento capital da saga da Terra-média. Assim como o nobre escocês, que ouve das bruxas que só poderá ser derrotado por um homem não nascido de mulher – o que se revela algo mais simples do que parece – o rei bruxo de Angmar enfrenta Éowyn com a profecia de que nenhum homem poderá derrotá-lo. As duas histórias mostram o quanto a ânsia pelo poder pode cegar o julgamento e influenciar a compreensão. E isso vindo de Tolkien, que em “Sobre Histórias de Fadas” diz achar as feiticeiras de Macbeth “toleráveis” ao ler o texto, mas “quase intoleráveis” no palco, e que Shakespeare deveria ter escrito uma narrativa “caso tivesse habilidade ou paciência para essa arte”. Pena que Tolkien não possa ver o trabalho magnífico de Kathryn Hunter no novo A Tragédia de Macbeth, de Joel Coen, para mudar de ideia.
Sempre disposto a sacudir as estruturas, Terry Pratchet também foi até Macbeth para criar suas Wyrd Sisters. Com seu humor particular, que muitos conhecem apenas pela série Good Omens (Amazon), baseada em seu livro com Neil Gaiman, Pratchett parte da forma como Lady Macbeth se refere às bruxas – estranhas irmãs – para colocar seu trio de personagens em meio a um caso de sucessão real. Na história ambientada no universo Discworld, uma terra plana apoiada em quatro elefantes em cima de uma tartaruga gigante que vagueia pelo espaço, o rei Verence é morto por seu primo, que é persuadido por sua esposa a cometer o crime. Diante do assassinato, a coroa do rei morto e o príncipe herdeiro são entregues às três bruxas, Vovó Cera do Tempo, Tia Ogg e Margrete. Certas de que o destino vai se resolver sem ajuda, as três entregam o bebê a um grupo de atores itinerantes e escondem a coroa numa caixa de objetos de cena. Mas, logo elas percebem que o reino não pode esperar quinze anos até que herdeiro cresça e reivindique sua coroa. Então, as bruxas lançam um feitiço para que todo o reino avance quinze anos, quando o usurpador do trono convoca o mesmo grupo teatral para apresentar uma peça no palácio. Com várias referências também a Hamlet, a história vai aos mesmos temas de Macbeth, a ambição e o poder, sem perder a ironia e a diversão típicas de Pratchett.
Ray Bradbury foi outro autor inspirado por Macbeth. Partindo de uma experiência pessoal com um mágico de circo quando era criança e da mesma frase que aparece em Harry Potter, Bradbury escreveu Something this Way Comes, lançado no Brasil como Algo Sinistro Vem por Aí (Bertrand, tradução de Jorge Luiz Calife). Na história, adaptada para o cinema pelo próprio Bradbury com o título No Templo das Tentações (1983), dois amigos de treze anos, Will e Jim, se envolvem com um parque de diversões e o misterioso Sr. Dark e seu carrossel, capaz de acelerar ou reverter o tempo. Mesclando fantasia e horror, Bradbury explora temas como o medo e a ambição, representados pelo desejo dos personagens de subir no carrossel para envelhecer ou rejuvenescer. E, claro, não falta uma bruxa.
Os seriados também não ficam fora da influência da nefasta peça escocesa. Além dos episódios de Star Trek – A Série Clássica, A Consciência do Rei (The Conscience of the King), no qual a tripulação busca um genocida que pode estar oculto num grupo teatral, O Dia das Bruxas (Catspaw), onde os tripulantes da Enterprise encontram três bruxas e O Punhal Imaginário (Dagger of the Mind), que tira seu título de um trecho da peça, os temas de Macbeth aparecem com destaque em uma série mais recente, Breaking Bad.
Começando pela profecia, no caso de Walter, seu diagnóstico de câncer que revela o seu futuro e o faz entrar em movimento, a série de Vince Gilligan mostra outras influências da tragédia shakespeareana. A princípio distante das atividades de Walter, Skyler (Anna Gunn), como Lady Macbeth, torna-se parceira do marido no crime. Assim como o lorde escocês, Walter pondera longamente os prós e os contras antes de cometer seu primeiro assassinato no episódio “And the Bag’s In the River”, mas dali em diante segue cometendo crime após crime em sua sede de poder despertada pelo vaticínio de sua doença e impulsionada por anos de frustrações, seguindo adiante até a destruição, mesmo após receber notícias sobre o câncer que lhe permitiriam mudar de curso.
Em entrevistas sobre a série, Gilligan a descreveu como a transformação de Mr. Chips (o maravilhoso professor de Adeus, Mr. Chips, com Peter O´Toole) em Scarface (o criminoso personagem de Al Pacino no filme homônimo). Mas a trajetória de sangue e ambição é puramente shakespeareana. Ou melhor, simplesmente da natureza humana.
*Algo mau ‘stá pra chegar (tradução de Bárbara Heliodora).
Como escapar de Macbeth
Segundo as lendas teatrais britânicas, aquele que pronunciar o nome que não deve ser dito – não, não é Voldemort – deve sair do teatro, caminhando de costas, girar três vezes, cuspir por sobre o ombro esquerdo, xingar ou recitar uma frase de Shakespeare, voltar e bater na porta pedindo permissão para entrar.
A lista de infortúnios que, segundo a crença, deve-se à pesada atmosfera de sangue e traição que da peça, ou a uma praga lançada por bruxas verdadeiras contra Shakespeare por usar encantamentos reais em seu trabalho, começa com a morte em 1606 de um ator que interpretava Lady Macbeth (lembrando que na época era proibida a presença de mulheres nos palcos). Em outra produção do século 17, o ator que interpretava Duncan em Amsterdam foi morto quando uma adaga real foi usada em lugar da arma cenográfica. Em 1849, uma briga causada pela rivalidade entre o ator americano Edwin Forrest e o britânico William Charles Macready resultou em vinte e dois mortos e mais de cem feridos quando os dois interpretavam Macbeth em produções diferentes na cidade.
Já no século 20, em 1937, foi a vez de Laurence Oliver escapar por pouco da queda de um contrapeso no teatro Old Vic. Em 1947, o ator Harold Norman, que não acreditava em superstições, morreu durante uma cena de batalha na qual interpretava Macbeth. Em 1964, o teatro Nacional D. Maria II, em Portugal, foi consumido por um incêndio quando a peça estava sendo encenada no lugar e teve de ser reconstruído. No Brasil, em 1992, um incêndio aconteceu no Teatro Arthur Rubinstein pouco antes do elenco da montagem com Antonio Fagundes chegar. A mesma montagem passou por outro incidente quando um refletor despencou no palco quando a peça estava sendo encenada em Santos.
Antonio Fagundes (Macbeth) em cena de Macbeth, 1992
João Caldas, Antonio Fagundes
Acervo Idart/Centro Cultural São Paulo
Usando esses e outros fatos como prova, o pessoal de teatro segue evitando pronunciar o nome da peça fora de seu texto. Os descrentes ponderam que uma peça que está sendo encenada há 400 anos não tem como escapar de uma lista de problemas.
Na dúvida, anote o primeiro parágrafo.
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