Juliano Mattos, às vésperas dos quarenta, migra desde os cinco anos. Passou por São Paulo, Aracaju, Santos, Portugal, Polônia, República Checa e Espanha. Nessas mudanças, a arte foi uma constante: fotografa, toca, escreve – e luta, se artístico considerarmos seu ativismo.
Conversamos um pouco sobre sua andança e, principalmente, seu mais recente livro, Até Mais, E Obrigado Pelos Feixes! (Kotter, 2021).
Você pode contar um pouco da sua história?
Nasci em São Paulo e cresci em bairros populares de Aracaju no final dos anos 80 e começo dos 90, sempre morando com a minha mãe, o meu irmão, a minha tia e os meus avós maternos. Morei em vários lugares, estudei em várias escolas também. Apenas uma particular, todas as outras públicas e em condições deploráveis. Quase todos os meus amigos ao longo desses anos em Aracaju eram de classe média baixa ou de classe muito baixa. Estudei numa escola perto de uma favela e tive vários amigos de lá. Era gente com quem eu jogava futebol descalço nas ruas, algumas asfaltadas, outras de terra. Gente que provavelmente ainda mora no mesmo lugar e nas mesmas condições. A minha vida era o futebol e nada mais. Era tudo o que me importava e tudo o que eu fazia. E eu vivia em liberdade total, estava sempre na rua. Era um tempo em que ainda se subia em goiabeira para passar a tarde comendo goiaba.
Até que dos 16 para os 17 anos descobri o Punk Rock e ele mudou completamente a minha rotina. A partir de então eu só queria andar de skate e frequentar os shows das bandinhas locais, tudo muito precário e comovente. Esses foram meus melhores momentos, e foi justamente neste auge que a minha família materna, de origem portuguesa, decidiu que nos mudaríamos para Portugal. Eu tinha 18 anos e acabara de ser dispensado do exército. Acho que foi o maior alívio da minha vida até então.
Em Portugal, a adaptação foi terrível e entrei numa depressão que durou bastante tempo. Para meu irmão, que tinha 15 anos, foi mais tranquilo. Moramos o primeiro ano em Braga e depois viemos para o Porto, onde aos poucos nos fomos inserindo na cena Punk e ativista local. Mas eu nunca me senti totalmente adaptado. Até hoje a minha relação com a cidade (e com o país) é bem conturbada. Por isso morei em outros locais. Na Europa, Praga, capital tcheca, foi a cidade em que morei mais tempo depois do Porto. Tenho uma paixão estranha e meio exagerada pela terra de Kafka.
Como a sua arte entra nessa narrativa? Quais as suas primeiras lembranças artísticas?
A arte entrou com força na minha vida quando comecei a estudar à noite numa escola artística chamada Soares dos Reis, única no país junto com outra semelhante em Lisboa. Lá tive contato com cerâmica, joalheria, têxteis, madeiras, serigrafia, multimédia, etc., além de ter uma professora de História da Arte que era uma personagem à parte e tinha uma incrível capacidade de transformar qualquer bitolado num apreciador. Seu nome era Manuela Cambotas e a minha mãe, pintora e multiartista, estudou lá comigo e é amiga dela até hoje. Mas o que eu queria mesmo era fazer fotografia, o que já vinha namorando. Contudo, pratiquei-a muito pouco na Soares dos Reis e saí de lá sem finalizar toda a formação para ingressar em Geografia na faculdade. E entretanto comprei uma câmera reflex e fui me tornando um fotógrafo autodidata.
Antes disso, em Aracaju, eu preenchia cadernos desenhando estádios de futebol hehe. Adorava fazer isso. E também inventava à mão tipos de letras, e escrevia com elas quase sempre slogans futebolísticos. Acho que o que me sensibilizou mesmo para apreciar arte mais profundamente foi o Punk e as fanzines que comecei a ler, mas a paixão pela fotografia nasce nas próprias fotos de família. Temos dezenas de álbuns e sempre foi um passatempo meu observar fotos antigas de quando eu era bebê ou muito criança. Já as minhas primeiras lembranças artísticas remetem aos meus primeiros anos de vida e são dos desenhos, pinturas e composições musicais do meu pai e algumas ilustrações e livros infantis da minha mãe.
Nasci no seio de uma família de esquerda, boêmia e artista, algo que cessou quando meus pais se divorciaram. Eu tinha 8 anos e não tive tempo de aprender muito naquele ambiente cheio de tintas, telas, blocos de desenho, equipamentos de gravação… Lembro de ter um pequeno violão e de ser incentivado a tocar pelo meu pai, mas não devo ter tido muita paciência. Meu irmão desenha e gosta de fazer quadrinhos com temática zumbi e gore. Eu, como não aprendi a desenhar com tinta, desenho com luz (fotografia). Na música, ambos já tivemos algumas bandas de Punk e Metal, mas nenhuma que tivesse durado muito tempo. Tivemos uma banda juntos chamada Winston Smith, eu guitarrista e ele vocalista, e de todas as bandas em que um de nós participou, a que teve mais duração e projeção foi Crepúsculo Maldito, um projeto de metal criado pelo meu irmão com alguns amigos metaleiros. Para mim é uma frustração não ter conseguido ter uma banda para dar shows e gravar álbuns. Restou-me virar fotógrafo de eventos e fotografar as bandas dos outros.
Como você acha que sua arte e militância se conectam?
Até hoje se relaciona automaticamente o Punk com a política e com a militância. Em alguns lugares isso realmente existe, mas não é o caso de Portugal, onde o Punk está completamente alienado dessas. Em todos esses anos em que participei de ativismo no Porto, posso contar nos dedos os punks que em algum momento se juntaram a alguma causa. Da mesma forma que mudou a minha vida no fim da adolescência, o Punk também me decepcionou fortemente por causa da sua despolitização. Eu esperava encontrar aqui uma cena politicamente ativa. Fui me afastando do Punk ao perceber que tudo tinha um propósito meramente musical e lúdico, e que as letras panfletárias, quase sempre simplistas, repetitivas e até vazias, não passavam disso mesmo. É claro que eu comecei a me interessar por política a partir do Punk, mas não posso dizer que me conectei à militância através da música.
Como nenhuma banda minha vingou e a cena Punk não é mobilizada, o mais certo é dizer que essa conexão entre arte e militância aconteceu pela fotografia em 2016, quando comecei a fotografar manifestações no Porto. Era uma época em que eu trabalhava como fotógrafo na noite, em eventos, discotecas, e estava muito farto disso, só o fazia pelo dinheiro. Fotografar as manifestações das quais eu participava foi uma forma de literalmente mudar o foco. Certa feita, no Dia Internacional das Mulheres de 2017, o meu irmão, que estudou cinema, se juntou a mim e fomos cobrir a manifestação feminista, eu fotógrafo e ele videógrafo. Foi nesse dia que tive a ideia de criar um projeto de fotoativismo e videoativismo, o que se concretizou pela metade porque ele foi morar na Polônia.
Desde aquele dia, portanto, não parei mais. Fotografei dezenas de manifestações de rua no Porto, todas de esquerda, é claro. O Ativismo Em Foco – nome do meu projeto, que está no Facebook e no Instagram –, é totalmente comprometido com o antifascismo e o anticapitalismo, e o que mais fotografei nesses anos foram manifestações feministas. Atualmente tenho trabalhado com algumas pessoas no sentido de tentar publicar um livro de fotografias que mostre a ascensão do feminismo na cidade a partir das minhas fotos.
Quanto à escrita… como é seu processo criativo?
Não sei se tenho um processo criativo definido, mas há algo fundamental: a ambiência. Só consigo escrever no meu quarto, sentado na minha cama e com uma luminária que dê uma fraca luz ambiente às paredes cheias de fotos e posters. Sem esse cenário, nada flui na minha cabeça. E tem de ser à noite ou de madrugada. Durante o dia também não consigo ter concentração. Como é evidente, o processo é algo muito solitário, e a solidão acaba por temperar a própria escrita. Quase tudo o que escrevo deriva das vivências que vou tendo e de fragmentos do meu passado. Dificilmente invento alguma coisa do nada, e o pouco que invento serve quase sempre para enfeitar ou adicionar substância, são meros complementos. Tenho vários livros engavetados, começados e temporariamente abandonados. Às vezes pego num deles e escrevo mais umas páginas ou faço revisões. É tudo muito lento, porque não posso me dedicar 100% à escrita. Meu processo é caótico e desorganizado: pego num livro, escrevo até me aborrecer e passo para outro, e depois outro, sem nunca finalizar nenhum. E há trechos de uns que acabam por ser reproduzidos em outros. Uma mistureba, uma espécie de reciclagem que costumo fazer porque me agrada e faz parte do que existe de processo criativo naquilo que faço.
Quais são suas inspirações?
Minhas inspirações literárias são, sobretudo, Douglas Adams, Franz Kafka, George Orwell, Eduardo Galeano, Hermann Hesse e o pessoal da beat generation e mais recentemente autores da distopia cyberpunk como William Gibson. Na poesia, Mario Benedetti, Carlos Drummond de Andrade, Bocage… Todos homens, como pode ver. Mas são as minhas inspirações na escrita. Se formos falar de referências, a história é outra e há obviamente muitas mulheres. No meio literário e especialmente no meio acadêmico, em que várias das principais referências no meu campo de estudo são mulheres (dentro da Geografia, estou me especializando nas questões das cidades, do urbanismo, e suas transformações a partir da turistificação e da gentrificação).
Durante a pandemia passei a ler bem mais do que antes, e gostaria de dar algumas indicações. Um dos livros que estou lendo neste momento é Girl in a band, autobiografia da Kim Gordon da banda Sonic Youth. No começo da pandemia descobri a antropóloga Margaret Mead e fiquei encantado, e acho que a melhor coisa que li durante toda essa distopia pandêmica foi Persépolis, a maravilhosa autobiografia em quadrinhos da iraniana Marjane Satrapi, além do site Poca Olho, de uma galera lá de Aracaju que escreve crônicas curtas lindamente e me tem influenciado muito desde que o comecei a ler.
Ademais, não posso deixar de mencionar o meu pai, falecido em Setembro passado, cuja escrita me influenciou fortemente quando, durante alguns anos, trocávamos cartas com dezenas e às vezes centenas de páginas. Ele morava em Santos e a última vez que o vi foi em 1997, mas a sua escrita nessas cartas é uma das minhas maiores influências. E há também as fanzines da cena Punk. Foram as primeiras publicações que me instigaram a leitura e a escrita. A primeira fanzine que eu li na vida, chamada Bodega e publicada pelo Leonardo Panço da banda Jason do Rio de Janeiro, foi a responsável por incutir em mim a vontade de escrever. Faço sempre questão de referi-la porque ela foi um choque tremendo, todo um horizonte se abriu para mim. Foi o que me fez perceber que qualquer pessoa poderia escrever e editar o que escreve. E poderia escrever absolutamente qualquer coisa, de trivialidades a filosofias complexas. Os primeiros textos que esbocei eram imitações dos textos da Bodega. Logo depois disso eu já estava imitando textos de Bakunin ou escrevendo sobre Kant nas aulas de filosofia na Soares dos Reis.
Sabe dizer o porquê de escrever?
Eu escrevo para não sufocar, para não ser esmagado pelo peso do mundo, para retirar toneladas de dentro de mim. É claro que existe o elemento artístico, o técnico e o lúdico. Creio que todos eles estão presentes de forma equilibrada na minha escrita. Mas a função primordial da escrita na minha vida é mesmo me salvar. Como diz um amigo meu de Aracaju, o Adelvan, só a arte salva. Concordo com ele. E sinto-o. Eu gostaria de dizer que só a arte e a luta de classes salvam, mas a luta de classes está desorganizada, e de qualquer forma ela seria mais uma salvação coletiva das classes exploradas. A arte é sobretudo uma forma de salvação individual, embora também molde a consciência e a sensibilidade coletiva, digamos.
Pode contar da “escrita espontânea”?
Em 2014 publiquei um livro chamado Travessa das Almas. Foi um experimento e uma homenagem despretensiosa a um grupo de amigos formado dentro do mundo particular dos estudantes Erasmus. Foi com essas pessoas que desvendei a cidade do Porto como nunca o havia feito em mais de uma década. Só assim pude sentir-me pela primeira vez parte desta cidade e percebê-la de maneira mais ampla, preenchendo tantas lacunas. Não é exagero dizer que foram eles que me apresentaram ao Porto, e isso aconteceu antes da turistificação apoderar-se quase por completo da cidade. Travessa das Almas – o título foi retirado de uma ruela que realmente existe e onde dois dos meus principais amigos desse grupo viveram – foi a minha retribuição, e surgiu num momento ébrio, quando, embriagado, sentei num canto sozinho e comecei a escrever um poema enquanto contemplava aquela confraria de gente das mais diversas proveniências. Passados uns meses, ao fim do ano letivo quando todos foram embora, eu já tinha material suficiente para um livro. E assim foi. Um livro de poemas espontâneos, escritos in loco, durante as experiências e sob o efeito de álcool e às vezes de mais algumas coisas.
Você acha que escreve em um misto dos dois “portugueses”?
Sem dúvidas. E isso me agrada porque me proporciona um vocabulário mais alargado. E a minha pronúncia é uma mistureba de todas as pessoas brasileiras e portuguesas que passam pela minha vida com seus diferentes sotaques. A parte negativa disso é que quanto mais misturado é o meu sotaque e a minha escrita, mais os elementos nordestinos se perdem. Hoje, pouca gente consegue perceber alguma pronúncia nordestina na minha fala, embora ela esteja lá no fundo se você prestar atenção. Ultimamente tenho tentado me desfazer um pouco da formalidade adquirida com a influência do português de Portugal e mergulhar mais no que há de informalidade e marginalidade na literatura. Já fui bastante criticado por escrever “difícil”, por ser um “intelectualóide”, e, apesar de discordar das críticas, tenho tentado desenvolver uma escrita mais popular ou que mescle o popular e o erudito. Não há nada de errado em nenhum dos dois e nenhum é melhor que o outro.
Vamos falar da sua nova obra, Até mais e obrigado pelos feixes (Kotter, 2021)? Como você descreveria o estilo dela?
Para mim é um diário de bordo psicodélico. Eu embarquei numa viagem imaginária e fui escrevendo sobre ela sem sair da cama.
E qual o papel que ela teve em seu período de isolamento?
Foi a forma que eu encontrei de fugir do isolamento, mas durou poucos meses, apenas o primeiro isolamento entre Março e Junho de 2020, não consegui ficar escrevendo ininterruptamente durante toda esta distopia. Eu sou altamente hipocondríaco, passo muito mal por causa disso porque reproduzo os sintomas muito fortemente. Foram várias as vezes em que me autodiagnostiquei com Covid-19 por sentir falta de ar ou ter sensação de febre, por exemplo. Acontecia umas duas ou três vezes por semana e eu estava pirando. Acho que de fato enlouqueci um pouco e continuo enlouquecendo por causa da pandemia e do isolamento. O novo coronavírus nunca me pegou porque eu me isolei mais do que qualquer pessoa que conheço. E o fiz em parte por respeito às medidas sanitárias, mas também por causa da hipocondria, que realmente me devasta. Sempre fui muito sociável e ativo na vida mundana, e ter de me isolar tão rigorosamente e por tanto tempo me levou a uma depressão da qual ainda não saí. Já passei por outras depressões, mas nada como esta, e, pela primeira vez na vida, tomo medicamentos ansiolíticos e antidepressivos e tenho um psiquiatra e um psicólogo. Esse novo livro conta essa história: um hipocondríaco viajando na ficção e no passado para fugir do presente desolador.
O título remeteu ao de Douglas Adams… há conexão?
Sim, é uma homenagem a Douglas Adams. Os personagens Arthur Dent, Ford Prefect e Trillian aparecem no meu livro, eu dialogo com eles. E também há uma nuvenzinha de “ilógica” e uma alga babel, substituta do peixe babel por eu ser vegano. Durante algum tempo o nome do livro foi mudado para Pletora, mas no final voltei ao título original porque pletora, embora seja uma palavra bonita e sugestiva, parece nome de galáxia ou de planeta, e quase ninguém sabe o que ela significa. Até Mais, E Obrigado Pelos Feixes!, além de homenagear Douglas Adams, fica mais popular e mais divertido. Apesar de falar de hipocondria, de depressão, de ansiedade, de medo e de solidão, o livro também tem partes diversionistas, algumas bem toscas, que são mesmo para fazer rir. E há também muitos textos políticos dentro dele, sobretudo referentes à pornochanchada gospel-militarista do bolsonarismo genocida.
Por fim vamos a trocas rápidas? – Um trabalho fotográfico
Aqui vão dois: o de Sebastião Salgado em Serra Pelada e o de Robert Capa na Guerra Civil Espanhola.
– Uma música
Um medley de High Hopes de Pink Floyd com Como Nossos Pais de Belchior na voz de Elis Regina.
– Um poema
Embriagai-vos, Charles Baudelaire.
– Um recado aos artistas neste momento difícil
Só a arte salva. A arte e a vacina. E a luta de classes.
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