Aimé Fernand David Césaire (1913-2008) foi um poeta, dramaturgo, ensaísta e ativista do movimento negro martinicano, tento sido fundador e grande representante do movimento da négritude [negritude]. Césaire estudou no Liceu Louis Le Grand, em Paris, na década de 1930, após conquistar uma bolsa de estudos. O poeta martinicano viveu intensa atividade artística, ensaística e política, estando estas três esferas intrinsecamente interligadas ao longo de toda a sua produção intelectual. Foi laureado com o Grande Prêmio Nacional de Poesia, Prêmio América de Literatura e com o Prêmio Internacional Viareggio-Versilia. Sua obra teatral é composta por quatro peças, quais sejam: Et les chiens se taisaient [E os cães calavam-se] (1958), La tragédie du roi Christophe [A tragédia do rei Christophe] (1963), Une saison au Congo [Uma temporada no Congo] (1966) e Une Tempête, d’après ‘La Tempête’ de William Shakespeare: adaptation pour un théâtre nègre [Uma tempestade, baseado em “A Tempetade”, deWilliam Shakeaspere: adaptação para um teatro negro] (1969).
Como pesquisador da obra de Césaire participei, no verão de 2021, de um congresso internacional, no qual apresentei uma comunicação justamente centrada nesta última obra de Césaire, Une Tempête [Uma Tempestade]. A sala era coordenada por três doutores; o primeiro a se manifestar fez a clássica pergunta: “Quais as diferenças que você percebe ao longo do seu estudo entre as tempestades de Césaire e a de Shakespeare?”. Bem, o leitor deve ter em mente que ao centro de meu trabalho estava um diálogo entre Aimé Césaire e Lélia Gonzalez, não entre esse e William Shakespeare, ao que a pergunta se mostra completamente impertinente, e, para além disso, bastante sintomática para mim. Afinal, não era a primeira vez que me faziam essa pergunta, ou que via essa comparação ser forçada mesmo quando o aspecto específico debatido sobre a obra não requer essa aproximação entre esses dois autores. Há sempre a pergunta: “Onde está Shakeaspeare?”.
E toda vez que esta pergunta é refeita fica-me a sensação angustiante de que Césaire está mal fadado a ficar eternamente à sombra de Shakespeare. Anátema! Une Tempête não se subordina, nem tão pouco se circunscreve à mera intertextualidade, isto é, ao fato de ser uma reescrita d’A Tempestade. Ela é uma obra original, dotada de literariedade, com sua própria poética e matizes, com sua própria força e vitalidade, com sua própria reflexão literária, histórica, social, filosófica, cultural, política, linguística, filológica, simbólica, epistemológica e ética; é uma obra que tem muitas coisas a nos dizer para além aquelas ditas pela obra shakespeariana.
Césaire próprio parece estar ciente do risco que sua obra correria entre seus contemporâneos e, quiçá, entre a posterioridade, por isso num ato de indulgência antecipada acresce a obra um subtítulo que é, a essa questão, generosamente elucidativo ao leitor e a crítica: adaptation pour un théâtre nègre [adaptação para um teatro negro]. O que o dramaturgo busca com este exercício de reescrita é o direito a autorrepresentação identitária usurpada pelo bardo inglês.
À vista disso, não é como se Tempestade fosse uma série da Netflix, cujo roteiro da season 1 (A Tempestade) foi escrita por Shakespeare e o roteiro da season 2 por Césaire (Une Tempête), para que obrigatoriamente se tenha de assistir a season 1 para compreender a outra; não é disso que se trata. Ou nas palavras de Alcione Alves (2017, p. 17):
Une Tempête se mostra uma obra que, posteriormente e para além de Shakespeare, se lhe apropria possibilitando uma obra literária nova que não se repete e na qual não mais se discriminam seus elementos iniciais; nestes termos, a contribuição de seus muitos influxos constrói uma versão, uma tempestade possível, não mais a de Shakespeare: Césaire não busca ser Shakespeare.
Com isso não estamos negando a intertextualidade produzida por Césaire. O que estamos fazendo é chamar a atenção para outra coisa. Note, por exemplo, que embora Robinson Crusoé seja também uma reescrita d’A Tempestade, de Shakespeare, as pessoas não fazem (pelo menos não com a mesma frequência incisiva) a pergunta por “Onde está Shakespeare?” a este romance de Daniel Defoe e suas leituras e interpretações, como fazem-na ao drama césaireano, necessariamente comparando-as, como que buscando encontrar Shakespeare em Césaire; e em último grau reduzir a obra daquele, a obra desse. Mas tudo bem, afinal, Robinson Crusoé faz parte do cânone Ocidental e seu autor, da branquitude europeia… Já Césaire, bem…
Com isso cremos ter demonstrado como a racialização e o racismo operam para deslegitimar, inferiorizar e reduzir os discursos amefricanos, notadamente neste texto as produções intelectuais, como as obras literárias amefricanas.
REFERÊNCIAS
ALVES, A. C. “O paradoxo de Córdoba: sujeito cognoscente e violência epistêmica”. In: Cadernos de estudos culturais, Campo Grande: 2012, p. 9-24.
CÉSAIRE, A. Une tempête. Paris: Éditions Points, 2008.
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