A fixação em torno da imagem do pênis ou, mais propriamente, do falo, constitui um aspecto composicional intrínseco à lógica e ao imaginário ocidentais. Nesta seara, suas dimensões (comprimento, largura, etc) constitui-se como objeto central a sua configuração enquanto símbolo, quer de um ponto de vista das masculinidades cisnormativas frágeis e inseguras, quanto do ponto de vista das relações de poder e dominação, tanto heteronormativas, quanto homoafetivas. É sob a égide daquele último que desenvolvemos nosso argumento, concentrando nossa análise nas relações de poder existentes entre o pênis/falo e a racialização. Para tal, tomamos como ponto de partida uma passagem do romance Pelas Praças não Terá Nome, de James Baldwin. Recorremos subsidiariamente a relato próprio de experiência, a posts em redes sociais e ao Pensamento Negro contemporâneo. Comecemos pelo trecho a seguir extraído de Baldwin (1973, p. 50):
E é quase certo que os homens brancos, que inventaram a estória de que negro tem o pau grande, estão ainda à mercê deste pesadelo, e estão ainda, na maior parte, condenados, de uma maneira ou de outra, a tentar fazer deste pau, o próprio: pelo progresso que o mundo cristão fez daquela selva, está claro o propósito de manter os negros para sempre nas árvores”.
Neste excerto do romance podemos perceber a ausência de afetividade em relações interraciais, na qual o homem negro é reduzido a mero símbolo fálico, nunca sendo reconhecido como sujeito a quem se possa cogitar a troca de afetos, mas apenas visto como um “negro-pênis”, um mero objeto sexual; não que se faça aqui algum gesto de censura ou de pseudo-moralismo a relações casuais, o ponto ora destacado é outro. Como diz Grada Kilomba, pela ótica racista
O sujeito negro torna-se a personificação do sexualizado, com um apetite sexual violento: a prostituta, o cafetão, o estuprador, a/o erótica/o e a/o exótica/o (KILOMBA, 2019, p. 79).
Em se tratando de relações homoafetivas, como as descritas no romance de Baldwin, o problema ganha contornos particulares, pois concorrente e complementarmente ao “mito do homem negro bem dotado” temos o mito do “gay negro necessariamente ativo”, como que se as formas pelas quais um negro homossexual sente prazer com seu parceiro ou companheiro estivessem subordinadas ao comprimento e à grossura de seu pênis. Isso nos remete a nossa própria adolescência… Lembramo-nos que nosso primeiro namorado era negro e com um dote “avantajado”, o que nos gerou perplexidade e grande desconcerto quando ele afirmou ser passivo.
Ora, nós, gays brancos, fomos educados, a partir de um modelo racista e cisheteronormativo, a olhar para nossos ficantes, namorados e companheiros racializados dessa forma; o que de modo algum implica uma desresponsabilização de nossa parte. O que estamos dizendo é que se trata de um problema mais amplo, de caráter estrutural.
Mas este problema não se limita ao homem negro, desdobra-se e se estende ao homem asiático e ao asio-descendente; embora identifique-se aí o mesmo mecanismo ou processo de racialização, ele opera de maneira inversa. O asiático é, portanto, aquele que é sempre mencionado zombeteiramente como possuidor de um pênis pequeno. Podemos citar, a este respeito, comentários depreciativos e aviltantes sobre o cantor sul-coreano Park Jimin nas redes sociais, nos quais se alega que seu pênis possui um tamanho “negativo, de – 20 a – 25 centímetros duro”.
De um lado o excesso animalesco do homem negro (africano e amefricano); do outro, a impotência do homem asiático e asio-descendente. Ao centro, a temperança do homem branco, que precisamente por não ser evocado é tomado implicitamente como a referência, a base, aspecto que marca supostamente sua própria superioridade a um nível evolucional.
Por esse itinerário, fica patente, que a fixação com o tamanho do pênis está mais associado a um aspecto político-ideológico do imaginário ocidental, pelo qual se marca no corpo de determinados sujeitos à diferença cultural e identitária através de supostas diferenciações biológicas pelas quais se violenta e oblitera esses sujeitos, do que a um aspecto anatômico propriamente dito. Basta citarmos, para tal, que o homem sul-coreano e chinês, estigmatizados ambos por um pênis supostamente “pequeno”, estão na média mundial, a mesma média do homem brasileiro.
RERFERÊNCIAS
BALDWIN, James. E pelas praças não terá nome. Trad. Crayton Sarzy. São Paulo: Brasiliense, 1973.
KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
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