Elio Ferreira de Souza é doutor em Letras pela UFPE (Teoria da Literatura/Literatura Comparada), professor de Literatura na Graduação e no Programa de Pós-graduação em Letras da UESPI. É coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro – NEPA/UESPI. Publicou sete livros de poemas, além de ensaios e vários poemas em várias antologias. Publicou, ainda, poemas em quatro edições dos Cadernos Negros e organizou mais de uma dezena de livros de ensaios sobre Literatura e Cultura Afrodescendente.
A lírica de Elio Ferreira concentra um grande esforço criador, face aos paradoxos, matizes e complexidades que perpassam histórica e culturalmente os processo de construção identitária e subjetiva do continente, por ele denominado de América Negra (FERREIRA, 2014), em uma reinvindicação análoga e, igualmente potente, aquela de Lélia Gonzalez (2020), a partir de uma amefricanidade.
O poeta entrelaça, em sua tessitura, elementos da cosmogonia africana e da cultura piauiense, como no “Canto I” de seu poema “América Negra”, no qual evoca a mitopoética dos orixás, para reivindicar a África como berço da humanidade: “Nanã deu o barro a Oxalá/ e, do barro, Obatalá criou/ o homem/ e a mulher” (FERREIRA, 2014, p. 26); e também tradição regional do Bumba-meu-boi, como em seu “Blues cibernético II”: “O meu boi morreu,/o que será de mim,/ manda buscar outro/ oh, maninho,/ lá no Piauí!” (idem, p. 78).
Coaduna-se à tessitura poética a crítica sócio-histórica e a denúncia social, cujo percurso atravessa o período de escravização, como no Canto II de “América Negra” no qual se representa o sequestro e a violência da desumanização dos sujeitos racializados “Fui capturado a ferro, fogo e sangue.” (idem, p. 29), até a contemporaneidade, como no poema intitulado “Abracadabra (ou rap de um menino negro fugindo da morte)”: “você quer ver meu ventre aberto/ meu corpo apodrecendo a céu aberto/ você quer me ver no lixo” (idem, p. 69).
Há ainda o elemento da escrevivência, pelo qual, diz Conceição Evaristo (EVARISTO, 2007, p. 20, grifos nosso), se “compromete a minha escrita como lugar de autoafirmação das minhas particularidades, de minhas especificidades”. De modo que, pela escrevivência, Elio Ferreira transfigura em poesia, isto é, em matéria poética transbordante e animada, as lembranças de infância, que saídas deste lugar da experiência individual se coletivizam na forma da arte, excedendo, porquanto, o mero relato autobiográfico. Tal como se pode observar na cena recorrente do pai ferreiro trabalhando na oficina, que por vezes se confunde com a imagem do próprio Ogum, Pai dos metais, mestre ferreiro e orixá da tecnologia, presente nos poemas “O Ferreiro e o martelo”, “Blues Cibernético”, “América Negra”, entre outros. Ou ainda, através de lembranças dolorosas, como aquela rememorada em “Incidente em Floriano”: “O homem branco sorriu com desdém/ e apontou para mim:/ “Isso aí na minha terra é um rolo de fumo preto!”” (FERREIRA, 2014, p. 64), diante do que tece um dialogo antirracista.
Além disso, o poeta também propõe um exercício de reescrita literária, pela qual questiona formas cristalizadas no imaginário coletivo do Piauí, como no canto de ninar “Boi da cara preta”, no qual a própria branquitude tem seu lugar hegemônico nas representações subvertido, de modo que a figura assustadora se converte em “Boi, boi, boi…/ Boi da cara branca,/ pega esta criança,/ Que tem medo de carranca”. (idem, 81). Outras reescritas não passam pela rasura, como é o caso d’A Carta, da escravizada Esperança Garcia (1770), símbolo da resistência negra no Piauí e no Brasil, mas que, ao incorporar em seu poema, por meio do discurso indireto-livre, a voz da escravizada, endossa a reivindicação da humanidade de sujeitos racializados, e, por conseguinte, a prerrogativa humana dos afetos, dos vínculos familiares, destruídos pela força corrosiva do racismo: “O administrador me tirou de perto/ dos meus filhos e do meu marido” (FERREIRA, 2014, p. 39).
Por meio de todos estes recursos, operações e marcas estilísticas, Elio Ferreira recria, em sua poética, a arte dos antigos griots de África, os grandes “trovadores que reúnem tradições de todos os níveis” (VANSINA, 2010, p. 150); tal recriação se dá desde uma estética amefricana.
No que me cabe, ainda, ao final deste artigo, quero expressar a esperança ou desejo de ter feito jus a este grande poeta! Salve, salve, nosso griot amefricano!
Axé!
REFERÊNCIAS
FERREIRA, E. América Negra e outros poemas afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 2014.
EVARISTO, C. Da grafia-desenho da minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. In: ALEXANDRE, M. A. (Org.). Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007, p. 16-21.
VANSINA, J. A tradição oral e sua metodologia. In: KI-ZERBO, J. (Ed.). História geral da África, I: Metodologia e pré-história da África. 2.ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010, p. 139-166.
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