Munduruku Minamata, quarta-feira, 20 de abril, pré-feriado de Tiradentes e de Carnaval, eu aqui às 10h30 da manhã no cinema, no Centro Cultural Itaú, na rua Augusta, em São Paulo. Calma, calma, eu explico, não se trata de ensaio surrealista, apesar da desconexão conexa dos fatos apresentados. Por trás de tudo isto está um convite do Jorge Bodanzky para assistir à cabine para imprensa e convidados do seu último filme “Amazônia, a nova Minamata?”, ainda não finalizado, sobre mais uma tragédia anunciada: o derrame de mercúrio nos rios da bacia Amazônica, provocado pelos garimpos ilegais, com foco no que ocorre na área das tribos da etnia Munduruku, tragédia idêntica à ocorrida em Minamata, no Japão, décadas atrás.
Voltando ao que parece ser o mundo real, encontrei logo na chegada o Jorge e a Marcia Bodanzky, ela como sempre exibindo uma simpatia irradiante, ele apesar da larga experiência em momentos como este, não conseguia esconder uma certa ponta de ansiedade. Junto estavam Ricardo Braga e Gabi Yaroslavsky, amigos de longa data que passaram a me acompanhar na aventura dali em diante, enquanto os Bodanzky se ocupavam dos outros convidados.
Maria Fernanda, jornalista
Ficamos ali, esperando na ante-sala do cinema, proseando, eu na verdade bebia com sofreguidão a inteligência e simpatia do casal de amigos, quando chega uma mulher morena muito bonita, irradiando um charme diferente, muito próprio ao evento. Cabelos negros, olhos como duas jabuticabas, um sorriso simpático e logo se apresentou:
– Bom dia, eu sou Maria Fernanda, sou jornalista e acompanho com muito interesse o tema do filme que assistiremos.
Nós também nos apresentamos e, no momento seguinte, notei que seu braço direito estava pintado com desenhos que deduzi serem da tal etnia Munduruku. Podem acreditar, eu estava diante de uma autêntica índia Munduruku, certamente algum tipo de guerreira ou pajé, tamanha potência havia em sua fala e postura.
As portas do cinema se abriram e fomos seguindo a índia, que exercia de imediato sua liderança no grupo ali formado. Quando nos sentamos, fiquei intrigado admirando aquela pessoa ao meu lado, sem entender direito o que acontecia, até que a Gabi me deu um cutucão no braço:
– Oh! O filme já está começando!
Platéia atônita
A partir daí, a sequência de imagens, sons e relatos tomou conta de todo o ambiente, era a vez do Bodansky mostrar todo o seu poder de relatar e denunciar o que é uma tragédia anunciada.
Falar sobre uma obra dele é meio redundante, tudo é brilhante, tratado com cuidado e especialmente com muita inteligência e sensibilidade, roteiro, tomadas, relatos, personagens, tudo impactava e afetava a todos no cinema.
A plateia atônita assistia ao filme com olhos esbugalhados! A obra ainda não está finalizada, ainda faltam polimentos técnicos, uma coisinha aqui, outra ali, que certamente serão ajustadas até a sua conclusão para exibição. O mais importante, contudo, é o tema e como ele é tratado, a tragédia de toda uma população sendo envenenada paulatinamente por mercúrio, diariamente, sem qualquer consideração ou piedade, exatamente como em Minamata no Japão há anos atrás!
Por vezes, o som alto me incomodava, outras vezes era um pequeno detalhe, até que percebi que não era o som alto nem uma coisa aqui e outra ali, o que me incomodava mesmo era o próprio tema do filme, era a tragédia presente, real, escancarada, caminhando impassível, nos apresentando um futuro negro e sombrio. Não falo mais do filme para não dar nenhum “spoiler”, mas enfatizo que assisti-lo é obrigatório. No final, conseguimos aplaudir, apesar do estômago embrulhado e do sentimento de desesperança que tomou conta de todos nós.
“Declarações criminosas”
Bem, chegou a hora do “feedback”: Jorge, o diretor, e Nuno, o produtor, abriram a discussão com os presentes sobre o que haviam visto e suas opiniões, reações, etc. A partir daí houve de tudo, depoimentos e sugestões as mais diversas, do tipo:
– Acho que o filme deveria focar no Bolsonaro colocar suas declarações criminosas, e também nos deputados que o defendem ……
– Acho que devíamos iniciar um processo de desvalorização do ouro em nossa sociedade.
Nesse momento a Gabi, ao meu lado, retirou, disfarçadamente dois brincos de ouro que enfeitavam suas orelhas. Acho que … cada um na verdade queria fazer o seu filme mas, por fim, falou a Maria Fernada, que também estava ao meu lado. Ela explicou em dialeto Munduruku, coisas importantíssimas sobre a terra, a água e o ar e eu, apesar de não entender patavina do seu dialeto, compreendi tudo o que ela queria dizer, foi como que um fecho de ouro ao evento.
Para encerrar, Jorge, com sua generosidade habitual, agradeceu a presença de todos e aos comentários e depoimentos dados, dizendo estar muito feliz e satisfeito com tudo o que tinha ouvido. Quando me virei para conversar com a Maria Fernanda, ela havia sumido. Como que num passe de mágica ela desaparecera, ainda não sei se na terra, na água ou no ar!
NOTA DA REDAÇÃO: o documentário “Amazônia, a nova Minamata?”, de Jorge Bodansky, 70 min, produção da Ocean Films, ainda não está em exibição nas salas de cinema. Aguarde.
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